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Comportamento

Amor foi capaz de salvar a vida de um traficante e uma moradora de rua

Evandro e Elisângela contam detalhes de como deram a volta por cima, depois uma vida entregue à violência e ao vício de drogas

Thailla Torres | 18/09/2019 09:11
Hoje, os dois são casados e compartilham a experiência de vida para transformar outras pessoas. (Foto: Ana Carolina Santiago)
Hoje, os dois são casados e compartilham a experiência de vida para transformar outras pessoas. (Foto: Ana Carolina Santiago)

Elisângela Souza da Silva Luizeti morou 27 anos na rua, foi usuária de drogas e se prostituiu para sustentar o vício. Evandro Luizeti dos Santos se tornou alcoólatra aos 12 anos e entrou para o crime na adolescência, se tornando um dos traficantes mais conhecido de uma cidade do interior de São Paulo. Hoje, quem olha o sorriso dois nem imagina o passado maluco. O casal diz que deu a volta por cima e, sem nenhum receio, fala da trajetória de violência que só teve fim com a chegada do amor.

Ela nasceu e foi criada pelos avós em Campo Grande. Sempre que lembra da infância recorda do avô brincalhão contando histórias para fazer todos rirem. Ele viveu até os 11 anos da neta, que posteriormente viu nas ruas uma saída para a tristeza que sentia já na infância. “Saí de casa porque me se sentia sozinha”, justifica.

As histórias da infância cessam nessa época. A partir daí, ela se lembra bem do que passou nas ruas. “Comecei a descaminhar, andar com certas amizades, cheirar cola, usar maconha e outras coisas”.

No mundo das drogas ela acreditava que havia apoio. “Achei que tinha amigos, mas aos 13 eu estava me prostituindo para sustentar o vício”. Aos 14 anos veio a primeira gravidez. O bebê morreu meses depois do nascimento. Ainda na adolescência, teve mais dois filhos, que nunca viveram com ela. “Os entreguei para umas tias. Nunca vi a infância dos meus filhos. Mas eu não tinha condições de voltar para casa, o vício era tanto que eu roubava o que tinha pela frente para conseguir comprar droga”.

Os dois durante cerimônia de casamento. (Foto: Ana Carolina Santiago)
Os dois durante cerimônia de casamento. (Foto: Ana Carolina Santiago)

Elisângela não se lembra qual foi a primeira vez que usou crack, mas recorda de nem ter alcançado a maior idade e passar até 16 dias sem ter horas longas de sono por causa do uso excessivo da droga. “O efeito era tão forte que eu ria e chorava ao mesmo tempo, mas não fechava os olhos para dormir, era impossível”.

Além do vício que “destruía aos poucos o corpo”, a vida nas ruas como usuária e prostituta era a prova que merecia ser condenada aos olhos de alguns, e justificaram a brutalidade despejada em cima de moradores que, como Elisângela, estavam há anos nas ruas. “A pior época do ano pra gente era o frio. Não pela temperatura, mas por causa do burguês, sabe? Ele é quem passa e joga água, joga ovo, chuta a gente. Eita! Não sei quantas vezes passei por isso na rua”.

Nesse universo há menos tempo que outros moradores e usuários, Elisângela foi percebendo ao longo do vício que tinha condições de sair daquela vida. “Eu nunca esqueci meus filhos e nem minha família. Eu conhecia o caminho de casa”. Porém, nas ruas o discurso para pessoas como ela era bem diferente. “Todo mundo falava que eu não dava conta. Que não daria três dias para estar de volta às ruas. Então eu coloquei isso na cabeça e não tirei mais”.

Ela chegou a pesar 41 quilos. Comia só quando a barriga doía de fome. Mas como a prioridade era a droga, os trocados que sobravam só davam mesmo para revirar o lixo e comer restos das lanchonetes do Centro. “As vezes, eu olhava alguém comendo e a pessoa acabava me dando o lanche. Era assim, só com doação”.

Elisângela só viveu um período longe das ruas quando foi parar atrás das grades. “Fui presa por tráfico de drogas”. Ela jura que não vendia. “Eu levei a culpa porque dormi na casa de uma pessoa que estava cheia de droga”.

Ele – Evandro nasceu e cresceu em Tupã, interior de São Paulo. O mais velho de três meninos da família, ao voltar na infância recorda mesmo é do álcool. Começou a beber aos 12 anos e não sentia vontade de parar. O irmão do meio, com apenas 11 anos, se envolveu com drogas e roubos. “Eu não, eu só bebia, mas eu era quem guardava a arma dele, o dinheiro e via como coisas eram feitas”, conta aos 33 anos.

Elisângela, sentada no chão, com cobertor, no tempo em que morava na rua. (Foto: Arquivo Pessoal)
Elisângela, sentada no chão, com cobertor, no tempo em que morava na rua. (Foto: Arquivo Pessoal)

Mas não demorou muito para o crime convencer Evandro de uma realidade muito presente, em que o traficante tem dinheiro, poder e status social. “Quando eu tinha 16 anos, meu irmão foi preso por tráfico e encaminhado para Febem (hoje chamada de Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente ou Fundação Casa). Lá comecei a visitá-lo até ele sair. Assim que ele deixou o lugar, se envolveu com o crime novamente e eu comecei a ajudar”.

Pouco tempo depois, durante um atendado, seu irmão deu um tiro na polícia. “Ele foi preso de novo e eu assumi todos os negócios dele, passando a vender droga também”.

Aos 18 anos, Evandro se lembra de experimentar droga e se tornar um dependente, mas o comércio não combinava com o vício, por isso, precisou dar um fim ao uso se quisesse continuar no crime. Ele não pensou duas vezes. “Eu não tinha como ter poder se não vendia e só usava, então um amigo me convenceu a parar com as drogas, mas não me convenceu a parar de vender”.

Passado dez anos, Evandro dava adeus ao tráfico para ir à cadeia. Preso durante uma operação policial que encontrou drogas dentro de casa que havia alugado há 2 meses. “Acharam a droga e me levaram. Como tinha mais gente dentro de casa, ou eu assumia sozinho ou levava todo mundo preso. Eu assumi a bronca e fui condenado a cinco anos”.

Após dois anos e dois meses em regime fechado, o advogado recorreu e ganhou absolvição. Evandro se livrou da cadeia, mas não do crime. “Meu irmão foi solto dois meses antes de mim, em 2015. Ele voltou para o tráfico e eu também voltei a vender”.

Meses depois, véspera de Natal, Evandro se envolve em uma briga e chama o irmão para ajudar a resolver a história, mas um desencontro acabou em morte. “Meu irmão mais novo me colocou em um carro de uns moleques e me levou embora. Nisso me desencontrei do meu irmão do meio que estava a caminho com um revólver. Quando ele chegou, não me encontrou, houve uma discussão com um cara que começou a bater nele, então ele puxou o revólver e atirou”.

Os dois juntos, depois de verem a vida transformada.
Os dois juntos, depois de verem a vida transformada.

O crime aconteceu no Natal de 2015 e em janeiro de 2016 os três irmãos fugiram para o Mato Grosso do Sul para se esconder. “Alugamos uma casa, mas não demorou muito tempo para a polícia entrar na casa e nos levar presos”.

O irmão ficou preso e agora cumpre pena em São Paulo. Evandro até pensou em voltar para a cidade de origem, mas queria mudar de vida e sabia que lá o crime não daria paz para quem quer recomeçar. “Então eu acabei arrumando um emprego aqui e decidi ficar”.

O encontro - Em 2014, Elisângela estava vivendo na Avenida Costa e Silva, já com 39 anos, quando recebeu ajuda de um projeto social que entrega marmitas toda segunda-feira, vinculado a uma igreja evangélica da Capital. “Naquele dia conversei bastante com a equipe e disse que meu sonho era ser missionária. A pastora perguntou se eu queria ir à igreja passear e eu fui”.

Como ocorre em outros casos de reabilitação, a fé foi uma das ferramentas utilizadas por Elisângela e por quem lhe apoiou para recomeçar uma vida longe das drogas. “Mas isso não foi nada fácil. Eu tive abstinências horríveis, sentia vontade de sair correndo porque minha cabeça e eu meu corpo pediam droga. Mas eu tinha consciência que alguém, após 27 anos nas ruas, sem nem me conhecer direito, me colocou dentro da casa dela e confiou em mim. Eu tinha que lutar contra aquilo”.

Elizângela não só lutou como ganhou da vida o amor de Evandro que, após ter o irmão preso por homicídio, sentiu que aquela era a chance de não acabar novamente atrás das grades e ser um exemplo aos sobrinhos e primos que ficaram no interior de São Paulo. “Eu queria ser um cara melhor. Demorou, mas cheguei à conclusão que o poder é ilusório. Esse status que a gente tanto busca não serve pra nada. Eu precisava dormir em paz no meu travesseiro”.

Os dois trabalham numa empresa de limpeza da cidade que presta serviço a diversos estabelecimentos. “Um dia tivemos sorte de nos encontrar em um supermercado, há um ano. Uma colega disse que ela estava afim de mim e para ela disse que eu estava interessado. Mas a verdade é que nenhum dos dois tinham interesse, mas com essa aproximação acabamos conversando”.

As histórias de vida e superação se cruzaram. A cabeça erguida para vencer desafios e preconceitos por causa do passado despertou o coração um do outro. “Vi que ela era uma mulher forte”, diz Evandro. “Eu senti que ele era corajoso. Nem todo mundo tem coragem de falar abertamente do passado”, completa Elisângela.

Não demorou muito e os dois foram juntos para a igreja, onde selaram a união na presença de amigos e pessoas que um dia estenderam a eles o amor que pode transformar vidas. “Sempre que me perguntam o que pode transformar pessoas como a gente, eu respondo que é Deus, que para nós significa amor. Assim como o ato de confiar, acolher e cuidar também são considerados por nós amor. Ou seja, só o amor é capaz de transformar. É claro, também precisamos querer. Mas muitas vezes a gente quer, e ninguém mais acredita”, conclui.

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