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Meio Ambiente

Boiada peregrina por comida e ribeirinho teme que o fim venha pelo fogo

Com o Pantanal em chamas, principalmente em sua porção norte, preocupação é salvar animais e manter o pouco que se tem

Nyelder Rodrigues e Marcos Maluf | 20/09/2020 12:44
Jegues e mulas são essenciais no trabalho de conduzir a boiada (Foto: Marcos Maluf)
Jegues e mulas são essenciais no trabalho de conduzir a boiada (Foto: Marcos Maluf)

É como se o tempo tivesse parado. Ali, em meio a tantos quilômetros divididos entre o ermo cinza e o chão laranja, surge a comitiva. A boiada pantaneira caminha pela estrada Transpantaneira e não estoura, apesar do longo trajeto. Parece saber que, juntos e organizados, é mais fácil. Ou talvez, seja só a fraqueza que impeça a rebelião.

A peregrinação é grande. Não são 40 anos perdidos no Sinai, mas são longos e desgastantes 150 km em busca de pastagens para que os animais ali levados consigam se alimentar. Não há como negar que o ser silvestre do Pantanal sofre com as queimadas, mas é no mínimo insensível contestar o sofrimento do criado. E também do criador.

Não, não estamos falando daquele que conta o gado como se fossem meras cifras - apesar da clara valoração do animal e sua existência para esse fim. Estamos falando do homem pantaneiro que cuida, alimenta, trata e guia o bicho pelas estradas.

Valdomiro é um desses. Valdomiro Antunes, de 59 anos, 30 deles só em comitivas. Hoje ele e seus companheiros levam cerca de 200 cabeças de gado. Na frente, os cozinheiros balizam a 'multidão'. Mais para trás, burros e jegues ficam de reserva, para serem usados durante o descanso dos demais asininos e muares que auxiliam os peões.

"A gente tá até acostumado com esse tempo seco, sabe. Só que esse ano piorou, tá bem diferente e junto a procura por esse serviço de deslocamento de gado aumentou bastante. Temos que nos deslocar muito mais agora para encontrar um pasto verde", frisa Valdomiro.

Pantaneiro raiz, o chefe da comitiva sente na pele o aumento da sensação térmica, que beira os 50°C. "Tá diferente, ainda mais com esse fogaréu que tá acabando com muita coisa aqui no Pantanal", confirma. Muitas vezes a solução para encarar a situação é vender o gado do jeito que dá, fora de época mesmo.

O fogo - Se o calor torna o trabalho mais duro e o tempo seco prejudica pastagens, são os incêndios que destroem de vez com tudo. O fogo ali não é paixão. Ele não traz sentido a vida, não faz com que busquemos um rumo. Ali o fogo só traz medo. Medo de perder tudo. Medo de ver a vida sem rumo. Medo que faz seu Benedito querer fazer valer o nome.

Ribeirinho que mora há 30 anos no Pantanal, Benedito Ferreira da Cunha tem 67 anos e um temor: "Tenho medo que algo pegue fogo, porque tá muito quente, muito seco. Meu medo maior é que pegue fogo e ninguém consiga chegar para apagar, que fique tudo fora de controle. Já não temos quase nada e o fogo pode destruir a casa da gente".

O fogo e a secura trazem não só esses problemas ao ribeirinho. Benedito depende da pesca para viver. E com tão pouca água vindo do céu, a água na terra também está escassa. "Tá ruim pra pescar e o que estamos plantando não tá vingando. Tá seco demais, meu filho. Nem a água do poço tá dando conta mais", revela seu Benedito.

Comitivas fazem parte da vida de Valdomiro há 30 anos (Foto: Silas Lima)
Comitivas fazem parte da vida de Valdomiro há 30 anos (Foto: Silas Lima)

Um atoleiro - Lembra da enxada citada no primeiro texto, ainda sobre a chegada a Coxim, polo norte da região pantaneira visitada pela nossa equipe? Ela ficou na carroceria da camionete e foi acionada, mas pouco serviu. Atolamos e apesar de ser muito usada, ela em nada adiantou. Só um trator resolveu nosso problema.

Para sair dali demorou. Metade de um sábado (19) perdido. Isso mostra o quão difícil é chegar às áreas afetadas pelo fogo no Pantanal. Imaginar, por exemplo, que caminhões pipa podem facilmente auxiliar o combate, é quase como sonhar com a paz mundial.

"Sou eu quem levo os mantimentos para as fazendas dessa porção norte do Pantanal em Mato Grosso do Sul. Já atolei aqui também e sou obrigado a criar rotas alternativas pelo mato mesmo para chegar aos locais que preciso", explica o camioneiro Vilson Dias, 25 anos.

Peão conduz boiada pela Transpantaneira; missão é encontrar pastagem verde o suficiente (Foto: Silas Lima)
Peão conduz boiada pela Transpantaneira; missão é encontrar pastagem verde o suficiente (Foto: Silas Lima)

Foi Vilson quem ajudou, cortando caminho por fora da Transpantaneira, a chegar a fazenda que auxiliou a equipe do Campo Grande News a sair dali, a cerca de 100 km de Coxim e a 40 km de uma fazenda que pegou fogo há pouco tempo. A fumaça foi avistada de longe e foi um dos principais causadores do medo revelado por seu Benedito.

"O limite aqui é esse ponto. Ontem eu atolei nesse mesmo local e é bem difícil passar. O acesso aqui é complicado mesmo", completa Vilson, que seguiu por suas rotas pantaneira enquanto a reportagem prosseguiu a sua missão.

Seguindo viagem - Desde sexta-feira (18), a equipe do Campo Grande News peregrina pelo norte do Pantanal em Mato Grosso do Sul, a partir de Coxim, para mostrar os problemas locais agravados pelas queimadas e tempo seco excessivo.

Enquanto Silas Lima e Marcos Maluf fogem de atoleiros e entrevistam os moradores e trabalhadores da região, os repórteres em Campo Grande recebem as informações - com araras, galos e demais pássaros como som de fundo - e retratam o que acontece em um dos principais biomas do mundo, certamente também um dos mais ricos em diversidade.


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