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“Pequenas” violências na arte contemporânea

Por Alecsandra M. de Oliveira (*) | 28/03/2019 16:29

Das lutas da antiguidade às duas guerras mundiais, o testemunho histórico jogou luzes sobre grandes violências com vítimas e algozes quase sempre anônimos. Por muito tempo, os processos narrativos não individualizaram as dores, os sentimentos e os afetos.

Porém, a partir do final dos anos de 1980, a história iniciou uma reflexão sobre sua escrita e sobre o que deveria ser registrado. Acontecimentos como a queda do muro de Berlim, o fim da bipolaridade entre URSS e EUA (socialismo versus capitalismo), a implosão da URSS, a globalização, os avanços tecnológicos e os diversos conflitos étnico-religiosos espalhados pelo mundo provocaram urgente revisão sobre o anonimato da violência.

Nas últimas décadas do século XX, essa reavaliação compreendeu que a racionalidade histórica e as grandes narrativas não davam conta de atender à diversidade de vozes que irrompiam da cena privada para a pública. Etnias, grupos sexuais, religiosos e diversas outras “minorias”[2] ganharam protagonismo – não que nunca tivessem existido até aquele momento, mas seus nomes emergiram dos esmaecidos conceitos modernos que homogeneizavam a todos sob as categorias de povo, de nação e de população. Essas “minorias” aderiram aos movimentos sociais insurgentes que corroboraram ainda mais o declínio final das metanarrativas[3].

Assim, a partir do desmoronamento das metanarrativas, alguns estudiosos decretaram o “fim da história” ou o “fim da arte”. Hans Belting, por exemplo, não propôs o fim da arte, nem da história da arte como uma disciplina, mas apresentou fatores que marcaram o esgotamento cultural e epistemológico da tentativa eurocêntrica de enquadrá-las: o autor reconhece que realmente fracassou o esforço estruturante de dar à arte e à história coerência e validade pretensamente universal.

Concatenado às ideias de Belting, Arthur Danto viu o fim da arte não como o fim das obras de arte, mas como o término de um tipo de produção que estava integrada a uma narrativa pautada pelas noções de estilos, escolas e movimentos. Acima de tudo, nessa narrativa tradicional, existiria uma trajetória evolutiva na qual cada fazer artístico superaria o anterior; sendo assim, a compreensão da trajetória linear seria o instrumental imprescindível para avaliar qualquer obra de arte. Tudo isto caiu por terra quando os fatos históricos e a própria arte se rebelaram contra esse sistema evolutivo.

Ainda no âmbito dessa perspectiva aberta pelo fim das metanarrativas, o Estado foi incapaz de manter o monopólio da violência. O terrorismo, por exemplo, aflorou como uma das respostas ao questionamento do status quo e à crise dos partidos políticos centrados em ideologias de esquerda ou de direita. Na verdade, o terrorismo, bem como todas as reivindicações das “minorias”, são fragmentos de história que – muitas vezes contraditórios entre si – foram ignorados pelas grandes narrativas. O não reconhecimento dessas histórias ecoa nos conflitos que estavam abafados por grandes forças coercitivas.

Quando essas forças foram diluídas, o exercício do poder passou a estar em toda parte e a ser questionado mais e mais; onde há poder não pode existir afeto, somente a coerção e a violência subsistem. Se até os anos de 1970 o inimigo era supostamente visível, no fim dos anos de 1990 ele era onipresente. O poder e a violência estavam infiltrados no dia a dia. Saiu-se da esfera política para as chamadas micropolíticas, ou seja, a preocupação com os fenômenos de controle de poder entre indivíduos, grupos e organizações tomou espaço no convívio diário.

Hoje, passados cerca de 40 anos da queda do discurso das metanarrativas e adjacente às revisões historiográficas e epistemológicas, artistas conectaram-se com o exercício da micropolítica, isto é, com aquelas reivindicações que tratam sobre as questões sociais, de gênero, do corpo, da sexualidade e das instituições que detêm algum tipo de poder (família, escola, igreja e todo e qualquer domínio dos saberes). Nessas circunstâncias, as “pequenas” violências que atingem o indivíduo contemporâneo são tão ou mais importantes do que as grandes pautas que movem o cenário político internacional: vítimas e algozes quase sempre têm nomes e estão muito próximos.

[Ana Teixeira] sentou-se em uma cadeira nas ruas de diferentes cidades com uma cadeira vazia ao seu lado e uma placa que dizia “Escuto histórias de amor”.

As “pequenas” violências surgem aqui entre aspas porque estão longe de serem diminutas. Elas são ocultas, constantes e envernizadas por uma camada de impessoalidade; acontecem no cotidiano contemporâneo e muitas vezes as vítimas não as compreendem como tal. Nesse sentido, o velado é mais difícil de ser combatido. A resistência, a denúncia, o discernimento e a atitude se fazem necessárias. As poéticas visuais podem ser o meio catártico para as transformações efetivas desta realidade. Assim, as “pequenas” violências muitas vezes motivam e permeiam os discursos de muitos artistas contemporâneos sensíveis às injustiças e à condição marginalizada de diversas “minorias”.

Sobre as “pequenas” violências que atingem a condição feminina, Beth Moysés, por exemplo, desconstrói o vestido de noiva: o relacionamento homem-mulher e a violência doméstica são trabalhados na sua dimensão política e libertadora. A artista dialoga com o universo feminino há mais de 20 anos. Suas performances e vídeos tocam profundamente as dores e as cicatrizes que ficam pelas agressões sofridas, despertando aspirações futuras.

A performance Memória e Afeto, realizada no dia 25 de novembro de 2000 – Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres – é um marco na trajetória da artista. Na ação performática, cerca de 150 mulheres vestidas de noivas andaram em cortejo pelas ruas da cidade de São Paulo. Depois dessa primeira experiência, a artista desdobrou o evento em muitos outros e em diversas cidades latino-americanas e europeias. A denúncia das performances também é redentora, uma vez que algumas participantes se conscientizam dos abusos sofridos e buscam libertar-se dos seus agressores.

Já Marcela Tiboni traz a materialidade da violência representada pelas armas. A instalação Arsenal, 2014, é composta de artefatos feitos de madeira e fogos de artifício. Apesar dos protótipos não terem balas ou gatilhos, eles estão munidos de pólvora e preservam a potencialidade do disparo. Metralhadoras, revólveres e outras diferentes armas estão ali acessíveis ao público. Isto porque a ideia é que o espectador passe seus limites e manuseie as armas.

Nessa relação íntima, as armas remetem às sensações, reações e memórias, tanto em sua extensão de coação e violência, quanto em seu desejo de possuir um objeto cuja potência escapa ao controle. A natureza do sentimento que uma arma engatilhada dá ao seu detentor torna-se o grande questionamento da artista: quais são suas reações frente ao poder que uma arma lhe atribui? No fundo, a ação de manipular as armas pode despertar para a reflexão sobre si e sobre o “outro” – alvo de sua ameaça.

As artistas abordadas até aqui denunciaram, despertaram para a reflexão e impulsionaram para o combate das “pequenas” violências, especialmente àqueles dirigidas às mulheres, à conduta sexual e social. Paralelamente, Ana Teixeira, na ação Dar-se como coisa que ouve: afetos de sonoridade na obra escuto histórias de amor, realizada entre os anos de 2005 e 2012, coloca total potência na atitude.

A artista sentou-se em uma cadeira nas ruas de diferentes cidades com uma cadeira vazia ao seu lado e uma placa que dizia “Escuto histórias de amor”. Para a artista, o foco não era o registro ou a coleta de histórias, era escutar o outro; o doar-se por um tempo e ser ouvinte. No cerne da ação, o respeito às histórias dos outros, de certa forma, denunciando o quanto o ignorar o outro é comum e torna-se uma “pequena” violência.

Por fim, vimos que as poéticas atuais permitem a reflexão sobre o exercício do poder e da violência, além de proporcionarem a leitura de um cenário pós-metanarrativas centrado na dimensão do íntimo, do pessoal; onde vítimas e algozes são próximos e transmutam-se; onde as “pequenas” violências minam as potencialidades dos indivíduos e grupos sociais.

Elas não nos salvam! Elas podem ser inspiração, meio e discurso do fazer artístico, mas mesmo sendo veladas são combatidas. As artistas respondem às demandas de seu tempo; exercem a crítica no nível das micropolíticas. Cabe à arte sempre nutrir a potência de transformação, assim como sempre existirá o forte propósito de buscar relações entre poéticas e contexto social, inscrevendo uma nova história.

(*) Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e membro da ABCA

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