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A conciliação é a solução aos litígios do SFH

Por Marcelo Meireles Lobão* | 22/01/2012 11:30

Durante décadas a preocupação dos tribunais esteve centrada na ampliação do acesso ao Poder Judiciário.[2] Resultado: hoje é mais fácil ingressar com uma ação judicial contra o principal ente governamental do país, responsável por um orçamento de um trilhão e meio de reais e pela representação, no plano internacional, da sexta economia do planeta, do que obter uma certidão em um cartório ou a expedição de um passaporte.

A necessidade de se imprimir efetividade e agilidade à solução (definitiva) dos conflitos – não apenas das demandas – não atraiu a mesma atenção daqueles que detinham as chaves de acesso ao Poder Judiciário. Enquanto a porta de entrada da Justiça estava escancarada, nem mesmo os donos da casa sabiam onde ficava a porta de saída. Por isso, em 2010, a taxa de congestionamento[3] do primeiro grau ultrapassou 61%, e do segundo grau, 50%. Isso significa que de cada grupo de 100 processos que tramitaram em 2010 em ambas as instâncias da Justiça, 61 e 50 processos, respectivamente, não foram baixados ou remetidos à fase de execução.

A taxa de congestionamento dos processos de execução torna ainda mais evidente que o modelo tradicional de distribuição de justiça no Brasil está a um passo da falência. De cada grupo de 100 processos de execução que tramitaram em 2010, 88 não foram baixados.

Nesse cenário sombrio, a conciliação surge como uma alternativa alvissareira. A solução imposta (ou “adjudicada”) cumpre um mero ritual de passagem dos autos de um escaninho a outro. Por mais ágil que seja o juiz, por mais elevado que seja o grau de sua intuição jurídica e humana, a técnica adversarial de composição não termina o conflito.[4] O esquizofrênico sistema recursal e de repartição de competências que ainda vigora no país não permite outra conclusão senão a de que as ações judiciais não foram pensadas para ter fim. Esse sistema produz, em um extremo, sentenças de primeiro grau que valem menos do que a tinta da caneta que o juiz usa para escrever o seu nome. Na outra ponta, tribunais superiores que ainda não se deram conta de que não são instâncias ordinárias, teimando em usurpar a competência reservada expressamente pela Constituição Federal aos juízes e tribunais de justiça e regionais federais, quanto à delimitação da matéria de fato.

A via consensual, ao revés, põe termo ao litígio ali mesmo, na mesa de audiência, antes que a controvérsia se torne um tormento ainda maior na vida das pessoas. O instituto não é novo. A Constituição do Império, em seu artigo 161, estabelecia a tentativa de reconciliação das partes como condição para o início de qualquer processo judicial.[5] Entretanto, o movimento só ganhou maior extensão e abrangência com a instituição dos Juizados Especiais Estaduais e Federais, em 1995 e 2001. Mesmo assim, os números estão muito aquém dos de muitos países desenvolvidos, em que a cultura da solução consensual está consolidada. Estima-se que, no Brasil, apenas 30% (trinta por cento) dos litígios são resolvidos por meio de acordo, ao passo que em outros países o índice chega a 82% (oitenta e dois por cento).

Por isso, o Conselho Nacional de Justiça hasteou os instrumentos de solução consensual como uma das principais metas do Poder Judiciário nacional. A Resolução 125, editada pelo Conselho em 2010, instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, dando primazia aos mecanismos de autocomposição, em particular a conciliação e a mediação, como forma de disseminar a cultura da pacificação social.

A solução consensual encerra virtudes que transpõem o mero objetivo pragmático de redução do acervo de autos que povoam as estantes do Poder Judiciário. O convite aos litigantes para que ascendam ao palco das discussões e se tornem coautores do processo de construção da decisão, alinhando suas posições no tabuleiro como se o veredicto fosse escrito a várias mãos, revigora os laços de socialidade, corresponsabilidade e protagonismo tão caros à afirmação da cidadania.

Ada Pellegrini Grinover, reverberando lição de Denti-Vigoriti, também acentua que a justiça conciliativa atinge conflitos sociais ainda inalcançáveis pelo modelo tradicional de composição:

“Todavia, a justiça conciliativa não atende apenas a reclamos de funcionalidade e eficiência do aparelho jurisdicional. E, na verdade, parece impróprio falar-se em racionalização da justiça, pela diminuição da sobrecarga dos tribunais, se o que se pretende, através dos equivalentes jurisdicionais, é também e primordialmente levar à solução controvérsias que freqüentemente não chegam a ser apreciadas pela justiça tradicional. Assim como a jurisdição não tem apenas escopo jurídico (o de atuação do direito objetivo), mas também escopos sociais (como a pacificação) e políticos (como a participação), assim também outros fundamentos podem ser vistos na adoção das vias conciliativas, alternativas ao processo: até porque a mediação e a conciliação, como visto, se inserem no plano da política judiciária e podem ser enquadradas numa acepção mais ampla de jurisdição, vista numa perspectiva funcional e teleológica.

Releva, assim, o fundamento social das vias conciliativas, consistente na sua função de pacificação social. Esta, via de regra, não é alcançada pela sentença, que se limita a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto, e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução; e que, de qualquer modo, se limita a solucionar a parcela de lide levada a juízo, sem possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla, da qual aquela emergiu, como simples ponta do iceberg. Por isso mesmo, foi salientado que a justiça tradicional se volta para o passado, enquanto a justiça informal se dirige ao futuro. A primeira julga e sentencia; a segunda compõe, concilia, previne situações de tensões e rupturas, exatamente onde a coexistência é um relevante elemento valorativo.

Resulta daí que o método contencioso de solução das controvérsias não é o mais apropriado para certos tipos de conflito, em que se faz necessário atentar para os problemas de relacionamento que estão à base da litigiosidade, mais do que aos meros sintomas que revelam a existência desses problemas.”[6]

O crescente descompasso entre o poder de compra dos salários da classe média e o reajuste das prestações dos financiamentos habitacionais, sobretudo a partir do governo Figueiredo, provocou uma explosão de ações judiciais no país.[7] José Maria Aragão estima que mais de cem mil mutuários, logo nos primeiros anos que se seguiram à crise de 1982, recorreram ao Poder Judiciário contra o aumento exponencial das prestações de amortização dos financiamentos concedidos no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH.[8]

A pressão exercida por setores influentes da sociedade, como sindicatos e associações de mutuários, resultou anos depois na edição de uma série de normas de caráter manifestamente populista que, de modo artificial, atrelaram o reajustamento das prestações à evolução salarial, quer dos mutuários, quer de sua categoria profissional. Acrescente-se a esse contexto um processo inflacionário de mil por cento ao ano e a receita do caos está pronta: contratos com amortização negativa, saldo devedor impagável, desequilíbrio financeiro, instabilidade jurídica, insolvência das famílias, inadimplência generalizada, prejuízo bilionário ao FGTS e ao Tesouro Nacional e centenas de milhares de ações despejadas no Poder Judiciário, em particular na Justiça Federal.

(*) Marcelo Meireles Lobão é Juiz Federal Substituto da 5ª Vara Federal, membro titular da Turma Recursal e Coordenador do Núcleo de Conciliação, do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania e do Gabinete Integrado de Execução de Penas e Medidas Alternativas da Seção Judiciária de Goiás.

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