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Atuação ostensiva só dispersa os usuários de crack

Por Gabriela P. Della Vedova* | 13/01/2012 16:31

Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. Sem os filtros despoluidores da justiça social e da decência política, toda e qualquer medida contra o crime, por mais violenta e repressiva que seja, constituirá mero recurso paliativo. É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem de ser adequadamente combatida por medidas policiais enérgicas. Mas que não se fique nisso, já que o puro e simples combate ao efeito não remove — nem resolve — a causa que o produz. Ao contrário: a luta isolada contra o efeito pode tornar-se danosa e perversa, uma vez que, destruindo sua função alertadora e denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, que aprofunda a raiz do mal.

Helio Pellegrino

Em 3 de janeiro de 2012 a Prefeitura paulistana em conjunto com o governo do estado de São Paulo deu início, na região da cracolândia, ao Plano de Ação Integrada Centro Legal. A estratégia, segundo seus idealizadores, é acabar com o tráfico e o uso de drogas na região central da cidade, além de forçar os usuários a buscar tratamento através da “dor e do sofrimento” provocados pela abstinência.

Falou-se muito que a ação policial, num primeiro momento, deveria impedir a subsistência de uma área de comércio e consumo livres do crack. Essa afirmação, como tem sido feita, pode gerar a falsa impressão de que em algum momento existiu na cidade de São Paulo um espaço urbano em que o comércio e o uso dessa substância fosse permitido, o que nunca ocorreu. O crack, como subproduto da cocaína, nasceu ilícito e se, como de fato ocorreu durante os últimos anos em São Paulo, a cracolândia ficou conhecida como um espaço em que se tolerava o uso e o comércio da droga, isso se deu por incompetência ou falta de boa vontade política.

Não é a primeira vez que se empreendem ações policiais na região da cracolândia. Em 2009, o governo Kassab desenvolveu estratégia semelhante que teve resultados passageiros; superado o furor inicial, a vigilância diminuiu, os usuários, então dispersos, voltaram ao seu local de consumo habitual e a situação se reestabeleceu. Ao que parece, o governo paulista decide suprir as próprias falhas de forma atabalhoada. Confunde, novamente, uma questão que é essencialmente de saúde e assistência social, com um problema de segurança pública. A atuação ostensiva da Polícia Militar não faz mais que dispersar os usuários, obrigando-os a buscar a droga em outro lugar. O tráfico, apesar de anteriormente concentrado na região da cracolândia, a ela nunca se restringiu. O aumento no número de crackeiros em regiões vizinhas ao centro de São Paulo já tem sido notado por comerciantes e moradores.

A justificativa dessa ação como uma tentiva de impedir que o usuário tenha acesso a droga para que, em virtude da abstinência, busque tratamento, não merece acolhida por duas razões: primeiro, porque nunca, em nenhum lugar do mundo, qualquer ação repressiva conseguiu impedir por completo que indivíduos tivessem acesso a drogas ilícitas e, segundo, porque pensar que a dor e o sofrimento causados pela abstinência da droga podem induzir o indivíduo dependente a uma autoreflexão que o levaria a buscar tratamento não tem qualquer base científica. O uso do crack pode provocar danos neuropsicológicos permanentes, comprometendo no indivíduo sua capacidade cognitiva e a adesão ao tratamento, razão pelo qual a abordagem do usuário deve ser pensada e executada com cuidado e a confiança no profissional de saúde não pode ser abalada por ações truculentas da polícia. Além disso, induzir os usuários a crises de abstinência de uma droga cujo padrão de uso é definido como compulsivo pode ter, como um de seus efeitos, o aumento nas manifestações violentas. Como se vê, o resultado pode ser o contrário do esperado.

A estratégia de “dor e sofrimento”, pela falta de suporte científico, induz a pensar que talvez seja máscara para a verdadeira e superficial intenção de limpeza do centro da cidade. Com os usuários dispersos e levados, como se espera, para regiões cada vez mais periféricas da cidade, o problema do crack some de vista e gera a falsa, e perigosa, sensação de que o problema foi resolvido. Provoca, como disse Helio Pellegrino, uma “cegueira perigosa, que aprofunda a raiz do mal”. Se existe, realmente, o interesse de dar suporte social e médico ao indivíduo, e não somente a intenção de tirá-lo de vista, a atuação conjunta dos sistemas de saúde, assistência social e segurança pública é imprescindível.

Se o objetivo do Plano de Ação Integrada Centro Legal, como recentemente se colocou numa manchete de jornal de grande circulação, for “esvaziar a cracolândia”, o poder público está no caminho certo. Se, no entanto, a ideia for combater o crack e tratar o usuário, devolvendo-lhe a dignidade, a Prefeitura e o governo do Estado de São Paulo precisam rever seus conceitos.

(*)Gabriela P. Della Vedova é advogada, mestranda pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da USP.

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