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Corpos exaustos

Por Bruno Gualano (*) | 08/07/2025 07:12

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han é uma voz singular no debate sobre cultura, subjetividade e poder na modernidade tardia. Com um texto acessível e, ao mesmo tempo, denso, Han revisita pensadores díspares como Heidegger, Foucault, Arendt, Nietzsche e Adorno para oferecer um diagnóstico ético-existencial do sujeito contemporâneo.

O excesso de positividade é um conceito central em seu pensamento, especialmente em "Sociedade do Cansaço" e "Sociedade da Transparência" (Ed. Vozes). Para o filósofo, já não vivemos sob repressão e negatividade, como nas sociedades disciplinares descritas por Foucault, mas imersos numa profusão de permissividade, estímulos motivacionais e discursos de superação. Nas palavras de Han, "a sociedade disciplinar é dominada por proibições. A sociedade do desempenho, por projetos".

Nesse regime de positividade, tudo precisa ser transparente, produtivo, comunicável, motivado e disponível. Não há espaço para o silêncio, o tédio, a contemplação, o fracasso ou qualquer forma de negatividade —elementos essenciais ao pensamento crítico e à experiência humana plena. Han nota que o sujeito contemporâneo não vive mais sob o imperativo do dever, mas do poder: "se posso, então devo".

Sua filosofia enquadra o mundo fitness nesse novo (velho) paradigma liberal, em que o sujeito de desempenho (Leistungssubjekt) age por metas, desafios e projetos autogeridos. E o comando não é mais "obedeça!", mas "realize-se!", "acredite em você!", "supere seus limites!".

Esse deslocamento é evidente no culto ao corpo ideal. Já não se treina, faz dieta ou recorre a suplementos, cirurgias e hormônios por prescrição externa, mas por uma exigência interiorizada: a de ser a melhor versão de si mesmo —forte, jovem, belo, produtivo. A coerção, antes exercida de fora, assume agora a forma de autoexploração, disfarçada de motivação. A dominação torna-se, desse modo, mais eficaz, justamente por agir sob a miragem da escolha individual.

No Instagram, TikTok e afins, o mundo fitness é palco do que Han chama de "pornografia da transparência", em que o exercício exaustivo, a dieta da moda e a superação diária são mercadorias em exibição. O corpo idealizado —símbolo de sucesso, autocontrole e autoestima— torna-se veículo de internalização de um padrão estético hegemônico. Assim, o estilo de vida fitness reduz o corpo a vitrine e o sujeito a "eu-empresa".

Nesse universo, o diferente, a falha, o cansaço ou mesmo o prazer do ócio são patologizados. Resulta daí um indivíduo permanentemente pressionado pela autodisciplina, ressentido por não performar como dele se espera e à beira da exaustão física e psíquica.

Sob a ótica de Han, o mundo fitness constitui um regime de positividade extrema: o imperativo do desempenho substitui o cuidado genuíno; a liberdade se converte em autoexploração; e a saúde é instrumentalizada a serviço da estética, da produtividade e da visibilidade. O corpo ideal —condenado ao aperfeiçoamento infinito— torna-se fonte de sofrimento, alienação e esgotamento. Não por acaso, observa o filósofo, a sociedade do desempenho é uma produtora de depressivos e fracassados.

Diante desse quadro, Han propõe um contramovimento. Sua crítica convida ao resgate da negatividade —isto é, do descanso, da alteridade, da fragilidade e do limite— como forma de resistência à positividade excessiva, ao narcisismo e à autocoerção. Transmutar o corpo de mera mercadoria em espaço de experiência talvez seja o primeiro passo para reumanizá-lo. A verdadeira liberdade requer o tédio, o erro, a opacidade —e o corpo que possa simplesmente ser, emancipado da tirania do fitness.

(*) Bruno Gualano, professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP, através da Folha de S. Paulo

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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