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Direito Penal em apuros – A neurociência bate em sua porta!

Por Fábio Trad (*) | 25/04/2011 10:40

Elas vêm assim; primeiro, insinuando-se, depois tomando espaços e, ao final, convencendo como se fossem verdades incontestáveis. As mudanças são o que nos certificam da condição inexorável de seres condenados à intermitência.

Aos poucos, porém perceptivelmente, nos subterrâneos das estruturas fundamentais da Ciência do Direito, leves tremores prenunciam um grande terremoto capaz de abrir sulcos profundos nas categorias tradicionais do Direito Penal clássico.

Há percepções que, por força do tempo, se petrificam na inteligência dos povos e se tornam dogmas. Uma delas é o que se convencionou chamar de livre-arbítrio, categoria que, embora revolvida por críticas consistentes ao longo de séculos, jamais deixou de ocupar o posto das concepções prioritárias da Filosofia e, via de conseqüência, do Direito.

Pois é justamente sobre o pórtico de sua dogmática conceituação que recai o peso – para alguns insuportável – do avanço da Neurociência, cobrindo com nuvens cada vez mais espessas a outrora clara, quase transparente, noção de livre-arbítrio.

Para se dimensionar o tamanho do estrago, basta entender que toda a justificação da imposição de uma pena criminal está fundamentada no livre-arbítrio, elemento central da culpabilidade. Se o que está se insinuando com a tecnologia da neurociência, de fato, se confirmar, todo o edifício teórico das ciências penais estará sustentada em areia movediça.

A neurociência entra em campo e revela que o conceito de livre-arbítrio – liberdade absoluta de determinação e de escolha – não se mostra adequado para explicar e tampouco fundamentar isoladamente a punição de quem desrespeita uma norma. Na linha de seu cursor reflexivo, os estudos indicam que as ações transgressoras (violentas ou não) podem resultar de uma disposição mental biológica, química e fisicamente pré-estruturada na anatomia do cérebro recrudescida pelo fator ambiental.

Na mesma linha, pesquisas realizadas pelo Centro de Excelência para o Desenvolvimento da Primeira Infância, da Universidade de Montreal no Canadá, sob a coordenação do Professor Richard Trembley, revelam dados precisos de que, ao contrário do que se pensava, não é na pré-adolescência ou na adolescência que se formam e se reúnem os elementos que compõem a personalidade que, na fase adulta, se consolidará como referência de uma identidade própria, mas bem antes, até mesmo na vida intrauterina prolongando-se aos quatro anos de vida.

Os mapeamentos que investigam as regiões do cérebro instigadas pelas reações comportamentais e sensoriais revelam que no córtex pré-frontal situa-se o campo de batalha eletroquímico e hormonal entre impulsos e freios que ditam predisposições e tendências nas condutas humanas. Chega-se a afirmar que o ato de sacudir ou balançar os bebês pode acarretar distúrbios de comportamento na medida em que lesiona a região do córtex pré-frontal, chocando-a com a estrutura dura do crânio.

Impressiona também a afirmação de cientistas de que o tabagismo na fase gestacional é fator determinante para o desequilíbrio da relação eletroquímica no cérebro da criança, o que pode, indiscutivelmente, suscetibilizá-la a comportamentos desviantes e agressivos em sua fase adulta na medida em que predisposta quimicamente a secretar quantidade insuficiente de hormônio que contribui para frear e censurar os impulsos agressivos anti-sociais.

Observa-se que não é apenas o prenúncio de uma reviravolta copernicana no Direito Penal que nos leva a compartilhar a percepção de espanto e perplexidade, mas as consequências destas premissas. É inescapável a necessidade de questionamentos derivados desta mudança de concepção.

Indaga-se: o deslocamento da categoria do livre-arbítrio do centro das elucubrações jurídico-penais deverá mitigar ou isentar de pena os que, à luz da Neurociência, forem analisados e diagnosticados como portadores de disfunção na relação eletroquímica e hormonal no cérebro? Na hipótese de se constatar que o agente sofre de grave deficiência de hormônio responsável pelo contra-impulso censor, a pena de prisão seria uma legítima resposta estatal e estaria compatível com o princípio da dignidade da pessoa humana?

A contribuição da Neurociência para as ciências penais poderia transformar o Direito Penal em um saber mais plural, transdisciplinar e humanista ou provocaria uma arrogante medicalização de uma ciência classicamente concebida como social e jurídica? De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da Neurociência no conceito de livre-arbítrio? Seria razoável pressupor como condição de punir que o agente, no momento do fato, esteja no gozo de uma “saúde cerebral”, reservando-se aos que dela não desfrutem as medidas de segurança?

É fato que o impacto real da Neurociência sobre o Direito Penal ainda não se fez sentir em toda a sua extensão. O momento é de perplexidade e amadurecimento reflexivo até porque se impõe apurar o grau e a extensão da eficácia do meio social como contraponto ao determinismo biológico, porém insistir na absolutização do livre-arbítrio como fundamento central de um saber que se mostra crescentemente incapaz de se autolegitimar é um erro crasso.

O livre-arbítrio não se coaduna com a noção fisicalista de um cérebro quimicamente predisposto à agressão. Se o fisicalismo cerebral formata o campo dentro do qual a mente se realiza - como sustentam alguns neurocientistas - o Direito Penal clássico não terá mais suficiência racional para existir.

Entretanto, várias cogitações evidenciam a precariedade do terreno sobre o qual a comunidade científica, inclusive os criminólogos, dão os primeiros passos em busca do conhecimento das consequências do impacto da Neurociência nas ciências jurídicas e, em especial, no Direito Penal. A discussão terá necessariamente uma extensão enciclopédica e transdisciplinar, abrindo-se a vários saberes especializados, mas, ironicamente, já comporta um paradoxo: o enorme avanço da moderna tecnologia das ciências médicas está nos devolvendo aos braços da boa e velha Filosofia, afinal só ela será capaz de iluminar racionalmente a grande interrogação da condição humana: o que é ser livre em um corpo formado por relações imutáveis, previsíveis e determinadas?

(*) Fábio Trad é deputado federal (PMDB-MS).

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