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O ano passado em Marienbad (Tempo e Memória)

Por Guido Bilharinho* | 08/12/2011 13:30

Quando se pensava o cinema ter atingido patamar superior de realização com Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, França, 1959), o primeiro longa de ficção de Alain Resnais (1922-), em que linguagem e ficção, forma e tema fundem-se na recuperação do tempo e da memória, de conteúdo e significado, eis que dois anos após surge O Ano Passado em Marienbad (L’Année Dernière à Marienbad, França, 1961), do mesmo diretor.

Nele, o procedimento estético-ficcional posto em prática em Hiroshima radicaliza-se imageticamente, alcançando meios e modos requintados de exploração formal e temática, subvertendo (e invertendo) o tempo e confundindo o espaço.

À época esse processo cinematográfico provocou impacto e desnorteamento, tal a complexidade metodológica e intelecto-racional adotada (e aplicada), influenciando a linguagem do cinema daí diante, de modo que, com o tempo, pôde-se pouco a pouco assimilá-la, com ela se acostumando.

Mesmo com o hábito e a necessidade (ou vezo) de se tentar diante de obra de ficção acompanhar e compreender a trama e o drama que encerra e conduz, o que primeiro aturde o espectador no filme é o esplendor visual decorrente da sofisticada utilização da câmera na seleção de seu objeto e na perspectiva da angulação e enquadramento a que é submetido com o intuito de produzir beleza estética cinematográfica daquilo que, por si, visualmente, já é belo.

A mesclagem dessas realidades estéticas, conduzida por desenvolta percepção racional e apurada sensibilidade, resulta em molde que sintetiza dialeticamente o estático (o objeto filmado) e o movimento de sua imagem num processo equivalente à visualização e movimentação do olhar humano.

Contudo, não do comum (e geralmente desatento e deseducado) olhar que enxerga, mas, não vê e nem percebe a beleza observada em sua plenitude.

Resnais, adentrando o portentoso hotel, não se limita a expô-lo na voluptuosidade barroca de seus corredores, escadas, galerias, salas, salões, quartos, tetos, painéis, adornos, lustres e portas. Com isso, e mais que isso, infunde-lhe beleza imagética ao extraí-la e exibí-la diretamente dos próprios objetos e ambientes captados.

O rigor que fundamenta e dirige sua ação e prática é o mesmo com que introduz o ser humano nesse espaço recortado da realidade privilegiada por sua valorização estética.

A princípio, as personagens, imóveis e hieráticas, compõem os amplos recintos focalizados apenas como adornos de sua visualidade.

Aos poucos, porém, mas sincopadamente, é-lhes infundido movimento em ritmo e conformidade com sua inserção estético-composicional no ambiente.

Onde há ser humano há vida, emoção, memória, relacionamentos e problemas.

A triangulação amorosa procedida no filme, por força da sutileza de sua elaboração, é submetida, antes de tudo, à poetização tão sofisticada, quase certamente ímpar no cinema, tais a delicadeza e a beleza de sua construção, articulação e condução.

A depuração formal resultante dos movimentos e angulações da câmera e dos enquadramentos das imagens combinada com o refinamento estrutural e procedimental do relacionamento entre os protagonistas num jogo sensorial e verbal que subverte e inverte tempo e memória e os confunde num bloco sintagmático único, porém, dinâmico, atingem no filme a máxima possibilidade estética e racional.

Se o desnorteamento inicialmente provocado pelo filme foi anabolizado, racionalizado e compreendido, a beleza nele e por ele produzida (objetivo e finalidade da arte) mantém-se íntegra e incólume às flutuações do tempo e dos humores humanos, do mesmo modo que a complexidade de sua formulação intelectual e a criatividade e inventividade de sua elaboração cinematográfica, bem como - e ainda - a potencialização das possibilidades sistêmicas da arte cinematográfica na criação de beleza estética que, juntamente com a alta formulação teórica e os avanços científicos, constituem as extremas possibilidades humanas.

(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)

(*) Guido Bilharinho é advogado

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