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O Campo Grande News é feito de gente como eu e você

Por Marta Ferreira* | 04/03/2019 10:46
Marta e o garoto Marcos, que conheceu durante visita a AACC.
Marta e o garoto Marcos, que conheceu durante visita a AACC.

Tenho de vivência como jornalista pouco mais que o Campo Grande News completa hoje. São quase 25 anos. Mas considero essa casa de fazer notícias meu principal lar profissional. Em várias temporadas nesta redação, com idas e vindas, formou-se uma coleção de histórias, um mosaico de homens, mulheres, crianças, bichos, uma série enorme de acontecimentos, situações, desde as mais prosaicas até as mais complexas.

Em 20 anos, tempo de vida do jornal, a comunicação passou por revolução tecnológica da qual o portal faz parte, com sua vanguarda na produção de conteúdo para internet. Nós, operários desse universo, nos transformamos junto. As emoções desse trabalho marcado por correria o tempo todo, por altos e baixos, por satisfações e momentos de tensão, estão registradas na minha personalidade. Escrevo sem dúvida: sou um pouco de Campo Grande News.

Estão em mim os sentimentos acumulados a partir do contato com as pessoas sobre quem fazemos notícia. É delas a mais forte memória, quando perguntada sobre os conteúdos mais significativos nas minhas temporadas de “CG News”.

Assim como artistas relutam em escolher sua obra mais impactante, é difícil relacionar as matérias guardadas numa gaveta especial do armário de lembranças.

Foi desafiador, quando ainda descobríamos o webjornalismo em uma pequena sala, atender à demanda do público e traduzir para a realidade local o atentado às torres gêmeas, em Nova Iorque. Com a internet ainda sem as conexões rápidas de hoje, garimpamos cidadãos sul-mato-grossenses vivendo de perto a tragédia. Aquilo era fazer parte da história mundial.

Jornalista, em geral, quer ser agente transformador da sociedade. Logo, as reportagens de denúncia, notadamente envolvendo o dinheiro público, soam como as mais relevantes na carreira. Deu satisfação profissional, lá pelos anos 2000, percorrer locais descritos em licitação pública e descobrir endereços de fachada. Foi de “lavar a alma” ver o processo ser cancelado depois dos indícios de irregularidades relatados na reportagem do jornal on-line.

Porém, essa lembrança não me traz sentimento. Sabe o que traz? É a foto do abraço do garoto Marcos, de 9 anos, hoje estrelinha. Conheci o menino em visita à AACC, para falar das atividades da entidade voltada às crianças com câncer. Em tratamento, ele revelou o desejo de conhecer “Os Havaianos”, grupo musical de sucesso à época, com show marcado em Campo Grande. Para nós, adultos, podia ser só vontade de criança, para ele era importante.

Conseguimos contato com os produtores e deu certo. Marcos e a turma toda atendida tiveram a visita dos famosos. Pelo menos naquela tarde, meninos e meninas vítimas dessa doença tão agressiva estamparam sorrisos. Poucos meses depois, o garoto se foi. A cada ano, volto a compartilhar a foto do carinho genuíno com a repórter.

As crianças têm mesmo lugar de destaque nesse relato. Filipinho, portador de doença rara, foi meu “personagem” durante período razoável. Escrevi várias vezes para o Campo Grande News sobre a luta dele desde bebê, sobre as campanhas para arrecadar dinheiro do tratamento. Gente como Luan Santana sensibilizou-se, ajudando o menino a buscar os melhores recursos da medicina. Filipinho vive atualmente nos Estados Unidos, onde a família foi para garantir a saúde do garoto e acabou ficando. De longe, torço por ele.

Dói ser jornalista às vezes, não raras. Dudu, Maikon, Kauã. São garotos que a gente não pôde ajudar com nosso trabalho. Dudu morreu nas mãos do padrasto, que chegou a auxiliar na procura pelo garoto, em 2007. Só foram encontrados pedaços de ossos e evidências de uma trama macabra. Maikon foi soterrado pela montanha de lixo no Dom Antônio Barbosa. Perto das festas de fim de ano de 2011, mantive o foco enquanto durou a busca pelo menino franzino. Era necessário.

Quando se confirmou o pior, desabei na redação. É dolorido não poder fugir do fato, sair da internet, escolher não conviver com a realidade. É sofrido, por vezes, ter de relatar com precisão.

O último menino citado, Kauã, o caso mais recente, ocorrido em 2018, foi vítima de alguém insuspeito inicialmente, um professor. Filho de família miserável, símbolo da deficiência das instituições de proteção às crianças, Kauã também nunca foi encontrado. Pode acreditar, a agonia dessa família nos contamina, também.

É assim, com mais ou menos intensidade, em inúmeras oportunidades. A cada mulher vítima de feminicídio, dói, a cada vítima da violência no trânsito, dói, a cada índio assassinado, a cada criança estuprada, sangra mais um pouco o coração de jornalista. A experiência no Campo Grande News, o retorno rápido do trabalho, para o bem e para o mal, imprime novas camadas não apenas na vida da cidade e do Estado, mas em cada um de nós.

A Marta Ferreira, a pessoa além da jornalista, muda, imperceptivelmente, a cada “personagem” que entrevista, ou contribui para a contar a história editando texto, escolhendo foto, fazendo título, postando vídeo, respondendo contato nas redes sociais. Tenho convicção de falar também pelos meus colegas de trabalho, de antes e de agora. A gente nem percebe, o leitor nem sempre se dá conta, mas é uma via de mão dupla que já dura duas décadas. Somos, juntos, o Campo Grande News.

*Marta Ferreira é jornalista e editora do Campo Grande News.

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