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O novo mal estar da civilização

Por (*) Cristiane Lang | 11/06/2025 13:30

A condenação à performance contínua, o cansaço que vai além do corpo

Vivemos em uma época em que estar cansado não é mais apenas uma condição física, mas um estado simbólico e existencial. O cansaço hoje não vem apenas de levantar cedo, enfrentar trânsito e cumprir longas jornadas. Ele nasce também da exaustão de precisar sempre ser, provar, mostrar, render, produzir, existir para os outros. Estamos condenados à performance contínua — e isso cobra um preço invisível, mas devastador.

A era da exibição

Antes, o reconhecimento vinha do esforço invisível: do trabalho silencioso, da dedicação longe dos holofotes, da constância discreta. Hoje, esse reconhecimento depende da visibilidade. Precisamos mostrar que estamos fazendo, sentindo, vivendo. Não basta ir à academia, tem que postar. Não basta estar feliz, tem que compartilhar. Não basta trabalhar, tem que performar eficiência, motivação e produtividade — o tempo todo.

A vida virou vitrine, e nela, somos ao mesmo tempo produto, vendedor e consumidor. Se não mostramos, é como se não existíssemos. O silêncio virou suspeito. A pausa, um erro. O descanso, quase um fracasso moral. A pergunta não é mais “como você está?”, mas “o que você tem feito?”. E o “nada” nunca é uma resposta aceitável.

Do burnout ao vazio: o cansaço como sintoma da alma

A performance contínua não esgota só o corpo; ela dilacera o sentido da existência. Quando tudo precisa ser convertido em valor, resultado ou engajamento, o ser humano deixa de ser fim em si mesmo e vira meio. Trabalhamos para mostrar trabalho. Amamos para exibir amor. Viajamos para alimentar narrativas. Vivemos para nos justificar.

Esse cansaço existencial não se resolve com uma noite de sono ou um fim de semana offline. Ele é mais profundo. É uma sensação de desalinho com a própria vida. Um sentimento surdo de que, mesmo cumprindo todas as tarefas, algo está faltando. Mesmo quando se tem sucesso, reconhecimento ou estabilidade, resta uma espécie de esvaziamento. Como se a alma estivesse cansada de carregar uma versão forçada de si mesma.

Esse tipo de cansaço não tem causa aparente. Não se localiza. É uma névoa que cobre tudo. Acorda-se já cansado, não do dia, mas do peso de existir em um mundo que exige demais e oferece pouco em troca. Um mundo onde é preciso justificar a própria presença o tempo inteiro — ser útil, interessante, relevante. Não se pode apenas viver. Tem que valer a pena. Sempre.

O culto ao “potencial”

A condenação à performance contínua também se alimenta de um conceito traiçoeiro: o do “potencial”. Desde cedo, nos ensinam que podemos tudo — e por isso, devemos tudo. Se não realizamos, é porque não nos esforçamos o suficiente. Se não vencemos, a culpa é nossa. O potencial, que deveria ser liberdade, vira dívida. Uma cobrança eterna: Você poderia estar fazendo mais. Sendo mais. Mostrando mais.

Essa lógica destrói a dignidade do comum. Desvaloriza a vida simples, os dias neutros, os ritmos mais lentos. Faz com que qualquer escolha que não vise superação, crescimento ou visibilidade pareça um erro de percurso. E assim vamos nos afastando de nós mesmos, tentando caber em moldes inalcançáveis.

A ditadura do entusiasmo

Outro pilar dessa condenação é a exigência do entusiasmo constante. Devemos estar sempre “pra cima”, “engajados”, “motivados”, “proativos”. Sentimentos como tristeza, cansaço, dúvida ou angústia precisam ser rapidamente resolvidos — ou escondidos. A performance emocional também é cobrada. Precisamos parecer fortes, resilientes, positivos.

Mas o ser humano não é uma máquina de produtividade emocional. Somos ambivalência, contradição, silêncio, sombra. A obrigação de estar sempre bem é uma violência sutil, mas profunda. Nos afasta do nosso próprio ritmo e nos impede de acessar uma verdade essencial: às vezes, não estar bem é o mais honesto que podemos ser.

Cansar-se de si

O cansaço existencial também se manifesta como um esgotamento da própria identidade. Em meio a tantos papéis — profissional de sucesso, parceiro ideal, amigo presente, cidadão consciente — esgota-se o que somos de verdade. Tornamo-nos múltiplas versões de nós mesmos, adaptadas a diferentes contextos, até que a pergunta mais simples se torna impossível de responder: quem sou eu, além do que preciso mostrar?

É um cansaço de ter que sustentar narrativas. De manter máscaras. De tentar preencher expectativas que nunca cessam. E no fundo, é o desejo silencioso de uma coisa só: poder simplesmente ser, sem precisar performar nada.

O direito ao descanso como resistência

Em um mundo que exige performance contínua, descansar é um ato político. Desacelerar é desafiar o sistema. Ser imperfeito é se rebelar contra a lógica da performance. A pausa deixa de ser um luxo e se torna uma necessidade vital — não apenas para o corpo, mas para a alma.

É preciso resgatar o direito de não fazer. De não mostrar. De não ser “o melhor”. É preciso reaprender a valorizar o ócio, o silêncio, o tempo improdutivo, o dia comum. Reivindicar o descanso é, no fundo, reivindicar a humanidade.

A performance tem fim?

Talvez a performance nunca desapareça completamente. Em alguma medida, todos vamos seguir tentando ser vistos, reconhecidos, amados. Mas podemos começar a desconfiar dos imperativos. Podemos aprender a ouvir o corpo, os afetos, as pausas. Podemos reconhecer que não somos projetos, marcas pessoais ou máquinas de superação.

Somos gente. E isso deveria bastar.

(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em Oncologia

 

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