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O que nos falta

Por Cristiane Lang (*) | 06/08/2025 08:30

Por que é tão mais fácil olhar para o que ainda não temos do que valorizar o que já está em nossas mãos? Por que é tão comum subestimar nossas conquistas, minimizá-las ou sequer reconhecê-las? Viver com a sensação de que sempre falta algo é um mal contemporâneo silencioso — e, em muitos casos, devastador para a saúde mental.

Estamos cercados por estímulos que reforçam a ideia de que nunca é suficiente. Seja nas redes sociais, onde a felicidade alheia é cuidadosamente editada, seja em contextos sociais que valorizam a produtividade extrema e o consumo, a ideia de sucesso virou uma linha de chegada que se move constantemente. Conquistamos algo, mas logo sentimos que precisamos do próximo objetivo, da próxima validação, da próxima vitória. O que era sonho vira hábito. O que era meta vira obrigação. E o que era conquista vira… invisível.

A psicologia da escassez

Do ponto de vista psicológico, essa tendência de focar no que falta pode ser explicada por um conceito conhecido como mentalidade da escassez. Quando estamos constantemente voltados para o que não temos — dinheiro, reconhecimento, amor, tempo — nossa mente entra em um estado de alerta e obsessão. É como se estivéssemos sempre em dívida com a vida.

Essa mentalidade nos coloca em um ciclo de comparação, insatisfação e baixa autoestima. Em vez de apreciar o caminho percorrido, somos dominados pela ansiedade do que ainda está distante. Essa forma de pensar não apenas distorce nossa percepção da realidade, mas também nos impede de viver o presente com gratidão e plenitude.

O apagamento das próprias vitórias

Outro fenômeno frequente é o desgaste da conquista. Aquilo que um dia nos deu orgulho passa a ser visto como “nada demais”. Alguém que batalhou anos para ter estabilidade financeira, por exemplo, pode começar a ver isso como “mínimo necessário”, esquecendo de todo o esforço envolvido no processo. Uma pessoa que superou traumas ou saiu de relacionamentos abusivos pode desconsiderar seu próprio crescimento emocional, como se o sofrimento anterior não merecesse respeito.

A verdade é que muitas pessoas carregam uma espécie de miopia emocional. Não enxergam o quanto cresceram, amadureceram ou sobreviveram. E isso cria um vazio que nenhuma nova conquista consegue preencher, porque a raiz da questão não está no que se tem ou se quer ter, mas na incapacidade de reconhecer o valor do que já foi conquistado.

O vício do “e depois?”

Vivemos na era do “e depois?”. Conquistei isso… e depois? Comprei aquilo… e depois? Casei… e depois? Essa busca incessante por mais nos torna reféns de um futuro que nunca chega. E o mais cruel é que, mesmo quando o “depois” chega, ele já não nos sacia mais.

A sociedade aplaude a produtividade, mas silencia o descanso. Celebra metas, mas ignora processos. Aplaude quem vence, mas não quem resiste. Nesse cenário, sentir-se insatisfeito o tempo todo é quase um resultado esperado. E muitas vezes, mesmo cercados por amor, estabilidade e realizações, ainda nos sentimos vazios — porque fomos condicionados a acreditar que a felicidade está lá na frente, nunca aqui.

Resgatar o olhar para o agora

Valorizar o que se tem não é conformismo. É sabedoria. Reconhecer suas vitórias, pequenas ou grandes, é um ato de resistência em uma cultura que lucra com a nossa insatisfação. É preciso aprender a parar. A contemplar. A agradecer. A dizer a si mesmo: “eu consegui”.

Esse movimento não é fácil — exige prática. Algumas formas de exercitar esse olhar incluem:

Escrever suas conquistas: listar o que você já conquistou na vida, mesmo que pareça pequeno.

Evitar comparações constantes: lembrar que cada trajetória é única, e que o que você tem hoje pode ser o sonho de alguém.

Praticar a gratidão diariamente: observar o que já existe em sua vida que te faz bem.

Celebrar marcos pessoais: não espere grandes feitos para comemorar. Valorize também os passos cotidianos.

O que você tem, já é muito

Enquanto você se culpa por não ter mais, talvez esteja ignorando o quanto já percorreu. Talvez esteja vivo, inteiro, saudável, aprendendo, se reconstruindo. E isso não é pouco.

A paz não está em acumular, mas em reconhecer. Em sair do automático da busca incessante e entrar no presente do que já é real. Quando conseguimos enxergar com mais clareza o que temos, o que falta perde força. E, muitas vezes, percebemos que aquilo que tanto nos faltava… já estava ali, só esperando ser visto.

(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.