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O Tribunal incomum e o navio comum

Por Valdemir Pires (*) | 22/01/2018 12:58

No dia 24 de janeiro de 2018 ocorrerá em Porto Alegre um dos julgamentos mais espetaculares da história do Judiciário brasileiro. Seria um evento de parar o país, não fosse apenas mais um, numa sucessão de acontecimentos mirabolantes desde o fatídico ano de 2013, em que teve início uma série de agitações políticas cujo epicentro foi a deposição da presidenta eleita em 2014. Poucos duvidam que a sentença já esteja pronta: o ex-presidente Lula será condenado. Se não for assim, o país será surpreendido e as redações dos grandes meios de comunicação de massas terão que reescrever as notícias sobre o episódio.

Mais do que a decisão sobre o processo movido contra Lula, estão em jogo as eleições presidenciais de 2018 e o futuro de práticas que vêm marcando a cena brasileira desde a divisão do país em dois blocos ideológicos relativamente homogêneos, que se confrontam verbalmente todo dia e que, em outras terras, de gente menos tolerante (ou alienada, talvez), poderia ter resultado numa guerra civil.

Condenar Lula implica alterar a priori o resultado eleitoral meses antes do processo eleitoral, pois ele é o favorito apontado pelas pesquisas. Além disso, condená-lo e não prendê-lo levará a constrangimentos institucionais de grande monta; prendê-lo, por outro lado, traz o ricos de uma convulsão de resultados imprevisíveis.

Como se chegou a essa situação? Haverão de perguntar os observadores internacionais; se bem que alguns já estão mostrando o que a imprensa no Brasil não faz: trata-se de um longo processo de desconstrução institucional que visa reverter ganhos sociais obtidos pela sociedade brasileira com a redemocratização, com a Constituição de 1988 e, não há como negar, com os governos progressistas de Lula e Dilma. Trata-se de um episódio no andamento e na tentativa de consolidação de um golpe.

A reação da sociedade brasileira ao que acontecerá no dia 24 de janeiro em Porto Alegre definirá o futuro de três práticas que vêm fragilizando as instituições e a imagem externa do Brasil, com severas consequências, políticas e econômicas.

A primeira delas é a judicialização da política (já antiga, mas agora muito robusta), que permite ao Judiciário e ao Ministério Público decidir sobre temas e problemas que competem à sociedade, por meio dos representantes por elas escolhidos para isso; que eleva o Judiciário à condição não de árbitro, mas de condutor de processos decisórios quotidianos do governo. E, pior ainda, judicialização com um Judiciário marcado por personalismos e fraca coesão a repeito da padronização de procedimentos, o que gera verdadeiros monarcas engendrados não pela legitimidade do sangue ou qualquer mérito, mas pelo uso de dispositivos constitucionais e legais que precisarão ser revistos, caso se queira quebrar o ciclo de problemas daí originados.

A segunda prática nociva é a partidarização, a olhos vistos, da Justiça, o que vem sendo denominado, apropriadamente, lawfare – uso do aparato judiciário e policial para impor derrotas aos adversários políticos e ideológicos. A inversão do ônus da prova do acusador para o acusado, ou, ainda mais grave, a aceitação de convicções no lugar de provas, desferidas contra membro de um grupo político, enquanto os de outro grupo passam ao largo, quando contra eles pesam evidências e até provas, vem acontecendo nos últimos anos, sem que o noticiário dominante chame a atenção para o fato.

A terceira prática é a espetacularização generalizada das atividades policiais e judiciárias, gerando uma fome desmesurada por notícias ruins contra os alvos preferidos dos que se entrincheiraram no poder por vias estranhas. Aproveitando-se de um sentimento coletivo de reprovação às práticas políticas corruptas, polícias e juízes se tornaram os novos salvadores da pátria, sem nenhuma preocupação com os riscos inerentes, principalmente quando esses instrumentos coercitivos do poder estão sob fracos controles da sociedade.

Não é o futuro de Lula que depende do que acontecerá no dia 24 de janeiro de 2018, em Porto Alegre, nem somente o das eleições deste ano – o que está em jogo é a possibilidade de resgate das instituições que balizam o jogo do poder no país. O clima de Fla-Flu é o pior a se manter, neste momento: não estamos em um estádio de futebol, mas no mesmo navio, com fissuras no casco e combustível baixo.

(*) Valdemir Pires é professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Unesp.

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