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ONU, ordem global e autonomia da arte: de Portinari a Rauschenberg

Christiane Wagner (*) | 22/09/2021 08:30

Os tempos modernos e a autonomia conquistada pelo indivíduo gradualmente estabeleceram e afirmaram a sua liberdade de escolha e participação social atual. Na arte, o processo foi o mesmo, passando pelas ideologias marcantes que a arte moderna defendia naquele momento de envolvimento social e político da modernidade. Uma arte que provocava muitas vezes o status quo. O rompimento com os cânones acadêmicos e com os valores tradicionais, foram decisivos para que a arte conquistasse a sua autonomia, mesmo que de forma transgressiva e subversiva ao sistema.

Na arte contemporânea, todo o significado difere do da arte moderna, em relação a uma abordagem da vida, ao se aproximar de uma estética do cotidiano. Antes havia ideologias para estabelecer o sentido da arte e selecionar a referência e, atualmente, a ausência desses valores nos condiciona apenas ao tempo para escolher entre as obras contemporâneas, aquelas que marcam seu valor. Estas obras de arte são aquelas que se tornam inesquecíveis enquanto outras são esquecidas, conforme os valores do contexto sociocultural de nossos dias.

Da virada do século XIX ao século XX, um novo sentido foi encontrado para a história da arte ocidental, que, quando analisada pelo teórico e crítico de arte americano Harold Rosenberg (1907-1978), seria condicionada a uma redefinição, comprometendo a noção que se tinha sobre a arte e não especificamente sobre a obra de arte atual. Entretanto, atualmente, não se trata de questionar as conquistas artísticas em suas particularidades, problematizando-as, e recusando-as como obras de arte diante das velhas noções sobre arte. Mas, ao contrário, trata-se de possibilitar novas experiências estéticas, ou melhor, de criar uma nova visão do mundo.

Assim, a arte, como forma essencialmente humana de manifestação de seus conhecimentos e ideias, também forma a estrutura social. A ideologização exercida pelas instituições não é formada apenas por ideias. É necessário materializá-las, ou seja, colocá-las em ordem e submetê-las à ação, para conseguir a sua realização. Para que uma ideologia exista, é necessário ter meios suficientes para sua materialização, e estes meios não são uma ideologia, mas sim a realidade. Esta representação ideológica — a materialização — é relativa às regras da ordem estabelecida pela ideologia dominante. A arte, neste sentido, é realizada seguindo os ideais da instituição ou de uma forma pseudoconsensual. Em uma posição contrária, esta arte seria subversiva ao sistema.

Entretanto, para situar esta introdução na contemporaneidade, considerando a autonomia da arte e o significado da imagem em relação ao ideal democrático global e referência para a noção de liberdade, apresento o exemplo da arte de Candido Portinari e Robert Rauschenberg como coadjuvantes dos objetivos institucionais da Organização das Nações Unidas. Contudo, para situar melhor este ensaio, as seguintes questões são basilares: a realização artística está vinculada a uma interdependência das estruturas e das relações sociais? O que é liberdade de expressão nas artes? Quais autonomias pessoais, coletivas ou artísticas são possíveis na sociedade contemporânea?

Um dos marcos modernistas mais significativos e representativos de uma nova direção para a orientação democrática global após a Segunda Guerra Mundial foi a missão essencial de fazer valer os direitos humanos fundamentais com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Para tanto, foi verificada uma nova relação entre instituições e organizações ligadas aos Estados-nação quanto ao significado da arte contemporânea. Este sentido da arte tem lentamente perdido suas características subversivas para se tornar uma arte mais consensual associada aos ideais políticos e sociais de organizações influentes.

Uma referência significativa a este respeito é a importância da imagem dos artistas ligando sua arte aos valores dos direitos fundamentais destinados às sociedades democráticas. A sede principal das Nações Unidas também mantém uma rica coleção de obras de arte preservada pelo Comitê de Arte da ONU. Artistas renomados de seus Estados-membros doaram obras à coleção de arte das Nações Unidas, representativas dos ideais da entidade e incorporadas na Carta das Nações Unidas, promovendo a ideia de unidade da humanidade em toda a sua diversidade cultural. Entre essas obras de arte, destacam-se os murais Guerra e Paz, de Candido Portinari. Dois murais foram apresentados às Nações Unidas, montados nas paredes leste e oeste do lobby do andar térreo do edifício da Assembleia Geral. Eles foram um presente do Brasil para a sede da ONU.

Ironicamente, a apresentação deste presente foi inesquecível porque Portinari não pôde estar presente na inauguração. Porque comunista, Portinari não pôde obter do governo americano a autorização para entrar no país. No entanto, esta situação destacou o significado de uma obra-prima com objetivos que superam as diferenças; ou seja, a arte continua sendo uma memória e uma mensagem para os ideais das Nações Unidas. Outra obra de arte notável é um mural do artista espanhol José Vela Zanetti, também localizado na sede das Nações Unidas. O colossal mural retrata a Luta pela Paz Duradoura da Humanidade, começando com a destruição de uma família e terminando com a ressurreição, mostrando uma criança de olhos brilhantes olhando para uma geração de paz. Campos de concentração, bombardeios e toda a agonia da guerra moderna estão simbolizados no quadro, no centro do qual uma gigantesca figura de quatro braços implanta o emblema das Nações Unidas enquanto a humanidade reconstrói um mundo dilacerado pela guerra.

O artista atento às exigências do cidadão no espaço público mantém os ideais de democracia em seus propósitos artísticos. Sua obra está situada no contexto social, atua em relação à condição humana. Esta consciência democrática orienta o artista na busca de seus direitos, em princípio, não apenas para a ideologia social, mas também para a realidade do direito à liberdade baseada em outros direitos, como a soberania pessoal, que já está estabelecida e é necessária.

Esses direitos estão relacionados à manutenção da ordem social por meio da igualdade de poder e de escolha, um espaço compartilhado por todos com integridade e administrado pela própria sociedade. No entanto, devemos também considerar que a democracia moderna não tem o mesmo sentido de democracia da Grécia antiga. Na verdade, a democracia moderna difere no que diz respeito ao sistema de governo. Entretanto, em geral, os cidadãos nas sociedades democráticas de hoje assumem a existência de igualdade e buscam maior liberdade nas suas decisões sobre o que fazer em relação às suas escolhas, desejando algum poder e mais participação. A independência estabelecida dentro de uma comunidade representa a orientação para a realização de ações sem restrições. Assim, nas relações sociais, os cidadãos buscam mais igualdade e o direito de participar nas decisões e descentralização do poder. As imagens resultantes desta relação entre arte e política focalizadas na estética cotidiana e nos ideais democráticos são percebidas quando a autenticidade da arte transforma a produção criativa em uma causa social.

Desta forma, entendemos a importância dos estudos visuais nas sociedades contemporâneas em meio ao desenvolvimento acelerado da cultura visual e dos meios de comunicação. Imagens de diferentes contextos incorporam principalmente as possibilidades oferecidas pelas diversas relações da cultura. Destaca-se aqui Tributo 21, uma série de litografias offset impressas na Universal Limited Art Editions (ULAE), Nova York, doada a 21 museus no mundo inteiro, incluindo o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo, em 1994. Essas imagens estão relacionadas ao impacto contemporâneo da imagem associada ao valor cultural como progresso sociopolítico, buscando melhorar o que poderia ser descrito como uma “democratização da arte”. Outro objetivo do trabalho é a reflexão estética provocada pelas imagens, que envolvem a diversidade cultural e o respeito à diferença. Talvez não haja exemplo mais significativo e simbólico da visualização de uma ideia abstrata relacionada aos direitos humanos do que a homenagem a Nelson Mandela, lembrando-nos da era do Apartheid. Outros exemplos desta mesma série Tributo 21 (1994) são Culturas Étnicas ‒ Dalai Lama; Paz ‒ Mikhail Gorbachev; Tecnologia ‒ Bill Gates; e Meio Ambiente ‒ Al Gore.

Em geral, os nomes e temas mencionados no Tributo 21 de Rauschenberg tornam o significado de sua arte evidente, evitando, assim, qualquer ambiguidade ou especulação interpretativa e estética sobre a composição visual de seus agrupamentos que abrangem um entendimento global. Eles representam fatos sociais e, além disso, as gravuras celebram eventos com temas humanitários interpretados como relevantes para este período, desde a época moderna até a contemporânea, em seu significado histórico, social, político e cultural. Em 1995, para a celebração do 50º aniversário da fundação das Nações Unidas, foi criada uma exposição de arte em seu complexo de Genebra, intitulada Diálogos de Paz. Esta exposição apresentou obras de arte de 60 artistas contemporâneos internacionais com o conceito e a curadoria assumidos por Adelina von Fürstenberg e organizada pela Associação Francesa para a Ação Artística. Na ocasião, o crítico de arte Alan Riding escreveu o ensaio Politics, This is Art. Art, This is Politics para o The New York Times, em 10 de agosto de 1995, destacando o seguinte:

Para todo o instinto natural dos artistas de querer mudar o mundo, é raro que suas obras sejam expostas em um ambiente onde os funcionários do governo devem tomar nota delas. Mas uma exposição incomum no complexo das Nações Unidas em Genebra faz exatamente isto: obriga a arte e a política a coexistir.

Entre essas obras de arte, a série de Robert Rauschenberg foi conspícua. Entretanto, a organizadora da exposição, Sra. von Fürstenberg, esclareceu que nem todas as obras eram explicitamente políticas, mas “em suas diferentes formas, todas elas fazem declarações sobre o estado do mundo meio século após o nascimento das Nações Unidas”. Ela também enfatizou a imensa importância da série de Rauschenberg, a Tributo 21, dado que “cada uma das 21 litografias toca um aspecto da existência humana — da felicidade e dos direitos humanos à saúde e à tecnologia — e, consideradas em conjunto, cobrem a gama da experiência humana”.

Entretanto, recordemos as mudanças sociais ocorridas desde a Declaração Francesa dos Direitos Humanos (La Déclaration des Droits de l’Homme), em 1789, como um primeiro passo, levando ao que está estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, e que ainda está em prática. Entretanto, as mudanças sociais resultantes do desenvolvimento econômico, técnico e industrial resultaram em novas formas de comunicação, maior acesso à informação e à aquisição de conhecimento. Essas mudanças representam um processo de transformação social que levou as relações humanas a adquirir novas necessidades, condicionando-as, assim, a novas exigências, que são, no que lhes concerne, novos direitos. A diversidade e a complexidade dos direitos humanos estão fundamentadas nas dificuldades inerentes ao conteúdo da retidão, que se baseia na moralidade e, por extensão, no acordo comum. Por um lado, o consenso de alguns sobre um determinado assunto implica a compreensão de que estes cidadãos têm um “valor absoluto”. Por outro lado, a expressão “direitos humanos” leva à homogeneidade na sociedade perante a lei; de fato, para dar direitos a alguns, outros terão tido seus direitos retirados. Norberto Bobbio justifica a situação atual e o futuro da democracia apresentando o direito mais significativo: o direito à liberdade de expressão. Entretanto, para obter o direito à liberdade de expressão, também é necessário remover o direito do cidadão de não ser enganado, persuadido, provocado, escandalizado ou ridicularizado.

Portanto, podemos imaginar as liberdades e os direitos sociais como podemos vivenciá-los nas sociedades atuais, de tal forma que, quanto mais livres os seres humanos são, menos factualmente corretos eles são e vice-versa. Assim, para Bobbio, “liberdade” é o direito concedido quando o Estado não intervém, e “poder” é o direito pelo qual a intervenção do Estado é assumida. Consequentemente, liberdade e poder nunca serão complementares, mas sim incompatíveis. Pensar em liberdade faz parte da natureza humana, ou seja, da vida em todos os seus sentidos. Entretanto, a compreensão do valor da liberdade é uma parte essencial da experiência em conjunto com a falta desta liberdade em várias formas. Os seres humanos são condicionados como cidadãos ou simples sobreviventes às condições naturais que determinam seus caminhos. Portanto, pensar na humanidade em sua natureza biológica, psicológica e social, assim como em seus aspectos éticos, estéticos e morais, e suas diferenças culturais, étnicas e religiosas é buscar uma compreensão de como a humanidade, em meio a condições determinadas ou arbitrárias, pode construir melhores relações. Para isso, sem dúvida, a comunicação em suas formas e meios é o fator determinante.

(*) Christiane Wagner é professora pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP.

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