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Para quem adorou o bandido morto, sobrou a revolta com o espancamento na rua

Primeiro morde, depois assopra

Por Ângela Kempfer (*) | 05/10/2016 08:59
Não consigo ver lógica nem na palmada.
Não consigo ver lógica nem na palmada.

Na segunda-feira, Campo Grande aplaudiu a morte de um ladrão no meio da rua. Na terça, se revoltou com rapaz espancado por um bando de trogloditas, também em via pública. Um era “bandido” ou outro “inocente”. A diferença entre os dois casos? Muitas. O motivo de cada um deles? O mesmo discurso do “bandido bom é bandido morto”.

O problema é que no segundo caso quem bateu também considerou o “mijão” um criminoso e desceu o braço no cara, com violência que assusta pelo ódio explícito em cenas de vídeo divulgado e compartilhado milhares de vezes na internet.

Nos comentários de Facebook, a barbárie do espancamento é potencializada pela valorização da vingança. ”Esse bando de covarde tem que receber uma dessas pra sentir na pele como o outro sentiu”, publicou uma mulher, e olha que foi a menos enfurecida. Teve gente que compartilhou telefone, nomes, endereço da família do espancador, dando todas as “dicas” para um revide à altura e ainda recomendou: “Não tem que meter policia no meio, pois não vai dar em nada”.

Tem quem antecipe, mesmo que de uma maneira bastante equivocada, as cenas dos próximos capítulos dessa lógica imbecil. “Um bando de covarde bater num só? Depois que acontece o pior e o machão amanhece caído numa sarjeta, ai vira coitadinho”.

Toda vez que alguém surge com essa conversinha, qualquer pessoa inteligente percebe que fica um pouco mais perigosa a pregação da “justiça com as próprias mãos”.

Quem consegue se colocar no lugar dos outros vai muito além. Imagina que, um dia, talvez, por falta de “sorte”, um filho, um sobrinho, ou alguns amigos podem beber mais do que deveriam, sair por aí falando besteira, fazer xixi no carro do outro e bingo! Um deles pode acabar espancado por dois musculosos, em show assistido por mais 3 machões.

Quem perdoa o ladrão da segunda-feira, também não vai ter dificuldades para entender que a justiça pune com cadeia, não com tiro pelas costas. Aos menos cristãos, mesmo assim práticos e sábios, restará avaliar o tamanho do risco que o cidadão corre em um país de policia despreparada, que atira para matar, não para imobilizar.

O exercício para chegar a uma boa conclusão é simples: Pesquise no Google a frase “policia mata inocente”. O resultado traz títulos como “10 manchetes em que a policia se "confunde" e mata inocentes”. Isso, claro, considerando o ponto de vista de quem acha que só os inocentes deveriam ser poupados no Brasil.

Fácil parece matar, difícil é prender. No caso de Campo Grande, o policial é um sortudo, porque, mesmo sem perguntar, matou um cara que já foi acusado até de estupro. Para o público que adora tais espetáculos, o êxtase foi garantido pela ficha policial do assaltante.

Então voltamos ao começo. Quem é culpado e quem é inocente até que, pelo menos, os antecedentes criminais sejam levantados? A cultura da violência não dá tempo para uma avaliação do tipo. Então o que manda é o “mexeu comigo, levou o troco,” resultado de uma sociedade ignorante que só sabe resolver as pendengas no braço.

É como no 7 X 1 do jogo Alemanha e Brasil. A cultura da paz perde vergonhosamente para a da porrada, tão defendida entre os pais de família que jantam com políticos e juízes criminosos, debatendo à mesa a necessidade de ações policiais mais duras contra a bandidagem nacional, para defender os filhos criados no luxo das propinas. 

Na conjuntura nacional, se bandido bom fosse bandido morto, quantos cairiam na polícia, no Congresso, nas Assembleias, nas Câmaras, no Executivo ou no Judiciário? Mas essa é outra conversinha que só aumenta a defesa do olho por olho, dente por dente. Hipocrisia não é desculpa para assalto, tão pouco para truculência ou execuções.

Em janeiro deste ano, o jornal Folha de São Paulo divulgou o resultado de uma pesquisa com a pergunta "Você concorda com a afirmação bandido bom é bandido morto?". No estudo do Datafolha, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 50% disseram concordar, 45% discordaram e o restante não soube responder ou não concorda nem discorda.

Se um dia alguém comprovar a lógica da cultura da porrada e da bala, juro que nunca mais escrevo uma linha sobre a cultura da paz, nem reclamo das chineladas que levei na infância.

(*) Ângela Kempfer é jornalista e editora do Lado B do Campo Grande News.

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