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Qual o próximo porco que queremos assistir?

Yan Masetto* | 06/01/2018 10:48

Black Mirror é uma série em que, realmente, todos que a veem se espantam. O espanto que ela causa tem uma tendência já bem conhecida na humanidade, e que tem um nome no campo artístico bem conhecido também: o grotesco. A série mostra e revela estas situações grotescas que são ocultadas por outras fantasias, por outras roupagens.

The National Anthem é o primeiro capítulo da primeira temporada, inaugurando a série com todo o impacto que um soco no estômago pode ser. Há o sequestro da princesa e, a partir disso, o primeiro-ministro é impelido a fazer sexo com uma porca, em rede nacional, ao vivo, para que ela não seja assassinada.

A inteligência britânica está atrás do sequestrador, porém o período exigido é curto. Todos os esforços, inclusive de usarem tecnologia para projetar o rosto do primeiro-ministro em outra pessoa. Esta ideia, entretanto, foi descoberta e o sequestrador envia um dedo com o anel da princesa.

Por conta disso, não resta nada a se fazer além de seguirem as exigências. E a zombaria, em todos lugares, apostas, ofensas morais e todo o tipo de comentário nas redes sociais. E isso abala, e muito, o casamento do protagonista. Deixemos isso para depois.

Retomando, em meio a todo tipo de comentário, todas as televisões estavam ligadas para assistir ao programa esdrúxulo exigido pelo sequestrador. E o que era apenas uma diversão se tornou um show de horrores: os telespectadores, compenetrados e cheios de angústia e nojo, se depararam com o poder mais intenso do que o que viam ali: era o da sociedade do espetáculo, era, mesmo achando aquilo cruel e nojento, não paravam de ver.

E por que não paravam? Bom, a ideia é a de criticar, ou de redimir, qualquer personagem posto em situações na telinha. A televisão é um meio de comunicação já um pouco antigo, mas com um poder incrível ainda. A proposta de Black Mirror em iniciar se valendo dela, mesmo em uma época em que se é possível detectar um passo evolutivo do instrumental cotidiano, é bem notório que a boa e velha Tv faça sua vez e não permita que ninguém se desconecte, seja algo grotesco ou não.

O que é interessante, e o que faz da série algo espetacular, é o fato de que a princesa já estava solta desde antes do início do ato. Dessa forma, não era - nem nunca foi - necessário a realização de nada. E toda a crueldade da circunstâncias fica ainda mais grave na parte final. O povo, em geral, era a favor da redenção do primeiro-ministro, pois ele havia feito aquilo pela vida da princesa. Grotesco ou não, era em prol de algo maior, em prol de uma vida. Era para silenciar um sequestrador. Sequestrador, aliás, que se enforca logo após a liberação dela.

E o que choca mais é a reação da esposa. A esposa dele se preocupou, desde o início, com o que iam pensar de seu marido, e ficava vendo todos os comentários e zombarias na internet. Por conta disso, após tudo feito, ela apenas é uma ilusão social: ela se fantasia de boa esposa ao lado dele, mas ela tem nojo dele, pois fez algo que ela não queria. Eles vivem um casamento de mídia, somente para parecerem bem perante às câmeras e à sociedade.

É por conta disso que Black Mirror se mostra, desde o início, cheio de desafios para quem o vê. As interpretações são sutis, e muitos ainda acham que estão vendo uma série sobre tecnologias e como elas podem ser mal utilizadas. O ponto é muito mais embaixo: com ou sem aquelas tecnologias, já vivemos como aquelas pessoas. Já damos notas, já julgamos, já achamos que o que fazemos é algo extremamente importante e pouco importa as outras pessoas. Vivemos em Black Mirror. E nos deparamos com aquilo que o grotesco faz de melhor: nos mostra a verdadeira face e seus traços mais verídicos.

*Yan Masetto é escritor e colaborador do blog Obvious

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