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Questão indígena – por uma educação menos ignorante

Camila Emboava | 20/09/2015 13:08

Por trás do absurdo número de líderes indígenas assassinados em Mato Grosso do Sul por conflito de terras existe sim uma grande vilã: a ignorância. Em dias nos quais o conflito pauta os veículos jornalísticos e as conversas entre as pessoas, fica evidente o quanto em geral os brasileiros pouco sabem sobre a questão indígena a nível regional, nacional e mundial. Não digo que as pessoas sejam ignorantes. Nossa educação é que tem sido, nesse ponto, muito ignorante. Ignorante porque ignora partes e versões importantes da história da nossa terra.

Ouvi incontáveis vezes brasileiros dizerem que a América do Sul tem menos história do que a Europa. Isso só pode ser considerado verdade se estabelecermos que o início da história das Américas é a chegada dos europeus ao continente. É a perspectiva mais usual, mas profundamente insuficiente. Para entender a questão indígena é preciso, como diz o pesquisador José Bessa Freire, descer das caravelas.

E é preciso lembrar do óbvio: os povos indígenas existiam antes da criação dos Estados Nacionais e não deixaram de existir depois.Aliás, os povos indígenas são muito diferentes entre si e a definição de um povo como indígena tem relação com o fato do grupo existir antes do estabelecimento dos Estados Nacionais, ter forte conexão com o território e ter uma cultura distinta dos grupos dominantes, apesar dos processos de colonização.

Por muitos séculos, em diferentes regiões do mundo, diversos povos nativos foram submetidos a políticas de assimilação. A ideia era que eles fossem integrados às sociedades nacionais e com o passar do tempo deixassem de ser indígenas. Populações foram realmente exterminadas, mas outras tantas resistiram e lutaram pelo direito de mantereme desenvolverem suas culturas. Há décadas, vários países, incluindo o Brasil, reconheceram os erros históricos cometidos contra essas populações e abandonaram os objetivos de assimilação.

No Brasil, a inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 foi o que marcou a mudança do paradigma assimilacionista do governo. O texto começa “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”. O artigo 231 afirma “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. ”

Ou seja, depois da ditadura militar, quando pudemos escrever a ideia do Brasil como Estado Democrático de Direito, prevemos que os povos indígenas seriam tratados como sujeitos de direito e não mais como transitórios, selvagens ou primitivos. O Brasil reforçou essa posição diante do mundo inteiro ao assinar declarações e convenções internacionais sobre os direitos dos povos indígenas como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2006.

Mas, se na teoria o Brasil se propôs a ser uma sociedade fraterna e pluralista, na prática a teoria é outra. Os povos indígenas continuam a ser (des)entendidos pela maioria da população brasileira como seres primitivos, sem história, sem espaço no presente e no futuro. Tem gente no Brasil que considera que um indígena deixa de ser índio por usar roupas, morar na cidade, frequentar a universidade. É como se eu pudesse deixar de ser mulher por usar calças ou deixar de ser brasileira por viver na Noruega. Ser indígena é pertencer a um povo.
Outro contexto indígena

Faço mestrado na Sámiallaskuvla (SámiUniversityCollege) em Guovdageaidnu, na Noruega. Os cursos, em sua maioria ministrados na língua norte-sámi, buscam conciliar conhecimentos nativos com a ciência “ocidental”. Grande parte dos professores, pesquisadores e estudantes são Sámi ou indígenas de outras etnias. Eu, estudante não-indígena, tenho aprendido muito desde janeiro e ainda vou aprender mais. Contudo, jamais deixarei de ser não-indígena. Do mesmo modo, ao fim do curso, meus colegas indígenas serão mestres em jornalismo e, ainda assim, indígenas.

Nils Johan Pävio, um dos meus professores - indígena do povo Sámi, advogado, doutor em Direito, fluente em sueco, norueguês e inglês, além do idioma norte-sámi–estranhou que no Brasil muita gente ainda pensasse em indígena apenas como quem vive na floresta. “Mas o Brasil assinou a Declaração das Nações Unidas, não foi? Na Suécia as pessoas também diziam isso, mas é uma discussão antiga e resolvida quando alcançamos nossos direitos”, ele me explica.

Nos anos 80, depois de séculos de políticas de assimilação e da resistência dos Sámi, os governos da Noruega, Suécia e Finlândia, desistiram de transformá-los em simplesmente noruegueses, suecos ou finlandeses. Aceitaram que ser Sámi, ou seja, ser indígena, não era transitório e reconheceram a responsabilidade deles em viabilizar as condições para que os Sámi mantivessem e desenvolvessem sua cultura, seu modo de vida. E se um indígena sueco tem o direito de ser indígena, qual seria o sentido de um não-indígena dizer como ele deve fazê-lo?

No Brasil, também há indígenas pesquisadores, como o Tonico Benites, Guarani Kaiowá, que cursa o pós-doutorado no Museu Nacional da UFRJ. Há indígenas advogados, como o Luiz Henrique Eloy. E há, como ilustrado pela reportagem da jornalista Caroline Maldonado no Campo Grande News, cerca de 800 indígenas universitários em Mato Grosso do Sul. Que jamais vão deixar de ser indígenas por serem intelectuais ou profissionais. Simplesmente porque têm o direito legítimo de ser, assegurado pela Constituição que escrevemos em 1988.
O país que queremos, os tempos que vivemos

Sei que quando abordamos a questão indígena, um dos questionamentos que pesam é a opinião de que os não-indígenas não são culpados pelas violações cometidas por seus antepassados. Bem, eu não me sinto culpada. Culpa remete ao passado, que não vivemos e nem poderíamos mudar. O que sinto é responsabilidade, pelo presente e futuro. Sou responsável por construir o país respeitoso que propomos quando tivemos a oportunidade de escrever novos caminhos.

Os povos indígenas no Brasil (e no mundo inteiro), após séculos de violações e pressões, não desapareceram. Não são transitórios, não vão desaparecer. No século 21 há espaço e sentido para a existência dos povos indígenas. O que não faz sentido no século 21 é a educação ignorante, a negação do diferente, o discurso de assimilação. Hoje não faria sentido que um norueguês questionasse o fato de que Nils, Sámi nascido e criado na Suécia, seja professor em uma instituição pública na Noruega. Mesmo que a Noruega tenha lutado pela independência da Suécia até 1905. A guerra acabou há mais de cem anos afinal.No Brasil também não faz sentido o discurso da Guerra da Tríplice Aliança, da volta da ditadura militar.


No século 21 não faz sentido o discurso de ordem do Ministro da Justiça, quando o STF enrola a tomada de uma decisão há dez anos, enquanto os Guarani Kaiowá vivem na beira da estrada. Muito menos faria sentido a proposta do governador de investigar quem incentiva os conflitos. O tempo, a falta de abrigo, a fome. A desnutrição, governador, imoralmente alta entre os Guarani Kaiowá, incentiva o conflito. No século 21 não faz sentido propor inquérito a uma entidade que alimenta quem tem fome. Porque a fome não faz sentido no século 21. Nem na Noruega, nem no Brasil. Quando morre um indígena no Brasil, o passado é que se fortalece. Morre um pedaço do presente, um pedaço do futuro, um pedaço do país que queremos e merecemos ser daqui para frente. Agora.

 *Camila Emboava é jornalista, com atuação já no Neppi/ucdb - Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas

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