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Sobre a terceira ou qualquer outra grande guerra

*Thiago Borges | 22/10/2016 12:24

Rami tinha onze anos quando foi atingido por uma viga de concreto no quarto onde dormia com mais outros nove sírios no dia treze de outubro de dois mil e dezesseis.

Rami não sabia inglês ou outra língua que não o árabe e mal sabia escrever. Rami era bom de contas. Gostava dos números. Ajudava seu pai nas compras de munição. Recontava caixas e caixas de cartuchos de MP5, AK47, M16, FAL, RPK e Dragunov. Todas organizadas e distribuídas em pacotes com número par para ajudar na contagem dos atiradores. “Este menino vale ouro! ” Diziam os amigos do pai que se sentia orgulhoso de Rami. Também pudera, era o único de seu sangue, vivo.

Rami perguntou seu pai o porquê dos aviões jogarem suas bombas neles. Rami não conseguia pensar em motivos. Não contrariavam os ensinamentos de Maomé. Respeitaram todos os jejuns, principalmente ele que adorava pães. Era um sacrifício ficar sem pão, mas ele honrava o compromisso com Ele. O pai de Rami, coçava a barba, tirava seu boné, levantava, olhava para a janela, conferia a trava do rifle, sentava novamente e não dizia nada. Ele não sabia o que responder para Rami. “Vá buscar chá, Rami!” era o que dizia. Rami suspeitava que o pai não sabia também dos motivos daquelas bombas em Aleppo. O pai de Rami era um soldado. Ele não precisa saber “porquês”, pensava Rami.

Rami corria pelos prédios do antigo centro. Na antiga loja de sapatos estavam alguns prisioneiros e ele gostava de ir lá contar quantos haviam ainda por lá. Um amigo do pai de Remi guardava uma garagem imensa com nove presos. Gente branca e infiel. Entretanto havia um deles que conversava em árabe com Rami. Era fiel e infiel ao mesmo tempo. Rami só o encontrava rezando com o Alcorão nas mãos. Quando Rami chegava ele sorria de felicidade ao revê-lo. Decidiu, então, perguntar ao prisioneiro: por que jogam bombas aqui em Aleppo?

“Você não sabe?” disse o encarcerado. Rami sacudiu a cabeça e o homem continuou. “Há pessoas de outras terras longe da nossa que não sabem também. Cada um que joga uma bomba aqui também não sabe. Elas apertam um botão e sua mãe morre. Seus irmãos morrem. Todos morrem.” Rami, nada espantado, confirma com a cabeça. “Eles nos chamam de ‘terroristas’. Eles nos chamam ‘mulçumanos’. Eles nos querem mortos porque alguém disse para eles que nós somos maus. Você é mau, Rami?”.

Rami era um menino. Ele não sabia, mas era tido como “alguém do mal”. Rami não se achava do mal. “E tem mais...”, disse um outro dos presos da garagem entrando na conversa. Era um dos brancos que, para surpresa de Rami, falava a mesma língua. “Eles querem essas terras. Eles inventaram até um nome para ela ‘oriente’. Eles disseram para virmos até aqui toma-la de vocês” em prantos dizia o prisioneiro branco. Rami se aproximou daquele estranho e apontou para um punhado de papel amassado. O homem respondeu. “Eu costumava ser professor. Ensinava relações internacionais. Estas são minhas análises” disse o desesperado homem selecionando um dos papéis. “Vou ler para você” e após uma tosse seca, começou.

“O sistema internacional é organizado de ciclos em ciclos por meio de ordens que organizam os demais estados. Pode ser configurado por unipolar, bipolar ou multipolar. Quando há um único polo de poder, temos um império mundial. Quando duas grandes potências disputam o poder em zonas de influências, temos a ordem chamada bipolar. Quando vários atores disputam o poder, o sistema internacional torna-se mais instável na ordem multipolar. Os estados entram em correntes conflitos para disputar terras e recursos para sobreviverem e, em última instância, se tornarem um império. No século XX assistimos duas grandes guerras e após a última, uma série de conflitos foram instaurados para manter a hegemonia de dois grandes polos: Estados Unidos da América e União Soviética. Depois de uma guerra no campo econômico, a União Soviética pereceu e os Estados Unidos continuaram com seu projeto de poder. Para isso, continuaram a busca por terra e recursos para manter seu poderio. Sua busca desenfreada por combustíveis fósseis e demais recursos naturais foi subsidiada por grandes bancos e outras corporações que continuaram a impulsionar o sistema de dívidas ao redor do planeta. Ao mesmo tempo, produziram tecnologia bélica para sustentar as guerras e as economias. Países menores sem armas nucleares foram subordinados aos interesses das grandes potências e por fim começaram suas estratégias de sobrevivência no sistema internacional”, levantou o homem branco e começou a falar mais alto seus escritos.

“Contudo, por vias ditas, racionais, os governantes e os tomadores de decisões decidiram ampliar suas zonas de influência novamente no século XXI. E os povos...” vociferou com força, “...como a Síria e todo chamado ‘oriente médio’, se rebelou contra essa ordem!”. Largou do papel e começou a berrar em outro idioma. Rami não compreendia as veias saltadas na testa do homem. Ele, então, começou em árabe novamente. “As bombas em Aleppo são pintadas com as cores de todos as ditas, ‘potências’. Elas se reúnem no que chamam de “Conselho de Segurança” e decidem quantos morrem, mas nunca quantos vivem...Não interessa a eles, a vida. A decisão é pela sua morte, menino!” aos berros, chorava outro homem na prisão.

Rami saiu correndo. Agora entendia um pouco sobre porque chamavam os brancos de “loucos”. As análises organizavam suas desordens, mas eles perdiam a razão. Por certo, suas bombas eram análises mais barulhentas. Em cada esquina, latas marcavam áreas livres de minas. Rami sabia identificar todas as latas de comida e seus significados. Era só olhar bem e encontrar um caminho livre de acidentes. Por uma rua não tão bombardeada, ficava um dos únicos jardins intactos mantido por um dos mais velhos de Aleppo. Ele ficava ali sentado. Rami andou devagar olhando aquele senhor. O velho percebeu e o chamou. “Menino, que faz aqui?" dizia o velho senhor descalço.
Rami, que aprendeu respeitar os idosos à pedido de sua mãe, parou e respondeu baixinho “Eu queria saber por que jogam bombas em Aleppo”. O enrugado sírio o olhou com um sorriso. Passou a mão em sua cabeça. “Sente aí, menino” disse o velho, “vou te contar”.

Rami, pegou um pão que o homem o presenteou. Mastigava com força e muito rápido. O velho então começou. “Eles jogam bombas porque eles não sabem que eles moram aqui também. Se eles soubessem que estão jogando bombas em suas próprias crianças, eles não o fariam. Eles não sabem de nada e continuam achando que sabem. Eles não sabem de onde vieram e para onde irão. Aleppo é um soldado, um prisioneiro, um especialista, um velho e uma criança”, disse rindo o velho jardineiro de Aleppo.

Rami, confuso, saboreava o resto do pão.

“Este é um jogo que ninguém triunfa. Não por ser difícil, mas pelas regras não pertencerem aos jogadores. Nessa jornada, luz e escuridão ainda são lados opostos. Eles não sabem viver sem crise. Separam sempre que podem com uma bomba ou uma caneta. E só precisavam ser jardineiros...nada mais importa nessa terra.”.
Olhando o velho com sorriso, Rami decidiu voltar para casa.

Chegou e recontou as munições. Separou as caixas nos cômodos dos atiradores. Voltou para o quarto com seus nove amigos.

Rami e os outros nove estavam mortos. Sua cabeça estava fora do corpo. Separada.
Rami estava morto desde a manhã do dia treze de outubro de qualquer ano, mas seu espírito brincava de jardinagem em Aleppo.

Ele estava pronto para a terceira ou qualquer outra guerra...

*Thiago Borges é mestre em Filosofia e analista de relações internacionais.

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