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Supremo e a presunção da inocência: interpretação conforme a quê?

Lenio Luiz Streck | 08/10/2016 15:31

Minha análise sobre o julgamento da presunção da inocência será diferente. Pegarei um ponto que parece ter passado despercebido, embora o ministro Marco Aurélio tenha nele tocado implicitamente: o STF criou uma aporia – um dilema sem saída. Explicarei.

Existe uma técnica para salvar um texto jurídico, chamada “interpretação conforme a Constituição”, (verfassungskonforme Auslegung, em queVerfassung é Constituição, konforme é conforme e Auslegung é interpretação – peço desculpas pelo detalhamento; é que, no Brasil, significantes e significados se tornaram inimigos nos últimos tempos). A chamada surgiu para os casos em que a nulificação de uma lei pode vir a causar maiores problemas do que se ficasse hígida no sistema. Esta é a ratio. Caso contrário, a lei seria fulminada. Sempre. Por isso, nesses casos, dá-se uma interpretação à lei, adaptando-a à Constituição. Salva-se-a. A ICC é, na verdade, uma adição de sentido. O texto permanece como está e se adiciona (Sinngebung – atribuição de sentido) um sentido que adeque a lei à Constituição. A fórmula é: este dispositivo só é constitucional se entendido no sentido de x.

A ICC é uma declaração positiva, ou seja, a ICC é uma decisão interpretativa de rejeição (da ação que visava inquina-la de inconstitucional!), que ocorre quando uma determinada lei é considerada como constitucional pelo tribunal (constitucional), desde que ela seja interpretada num sentido conforme a Constituição (interpretação adequadora). Já a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtiklärung ohne Normtextreduzierung) é uma decisão interpretativa de acolhimento (ou de acolhimento parcial), ou inconstitucionalidade parcial qualitativa, ideal, ou vertical, ou, ainda, decisão redutiva qualitativa. Na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, ocorre a exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo, sem que se produza alteração expressa do texto legal. Explico tudo isso em meu livroJurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Expliquei isso porque no STF há uma confusão entre as duas técnicas.

Por que estou dizendo isso? Para falar da decisão do STF que “rejeitou” (na verdade, ver-se-á que não é bem assim) as ADCs que visavam a declarar constitucional o artigo 283 do CPP. Isto quer dizer que, para que o Judiciário não aplique o artigo 283, ele deve dizer que ele é inconstitucional. Aliás, isso está escrito no artigo 28 da Lei 9.868, que trata dos efeitos cruzados: uma ADI julgada improcedente se “transforma” em ADC e uma ADC julgada improcedente tem os efeitos da ADI.
Lendo os votos, em especial os votos do ministros Fachin e Barroso, constata-se que o STF está criando um curioso hibridismo nos institutos de ADI e ADC.

A decisão do ministro Fachin que foi seguida pelos demais tem no seu dispositivo o seguinte:

“Voto por declarar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, que afasta aquela conferida pelos autores nas iniciais dos presentes feitos segundo à qual referida norma impediria o início da execução da pena tão logo esgotadas as instâncias ordinárias, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível.”

Bom, em primeiro lugar, se isso é verdadeiro, afastadas as interpretações de que fala o ministro, nada resta do dispositivo. É inconstitucional, mas, ao mesmo tempo, é constitucional? Em segundo lugar, quem pretende declarar a constitucionalidade do artigo 283 são os subscritores das ADC’s 43 e 44. Portanto, quem dá provimento às ADC’s está dando razão aos peticionários e sufragando a constitucionalidade do dispositivo, como deixou claríssimo a ministra Rosa Weber no seu voto. Estranhamente, vejo nos votos vencedores que eles “declaram a constitucionalidade do artigo 283 com interpretação conforme”. Só isso já daria razão à Ordem dos Advogados do Brasil e ao Partido Ecológico Nacional (autores das ações). Vejamos: se a ICC é uma decisão parcial positiva e é, sempre, uma decisão interpretativa de rejeição — porque rejeita a leitura inconstitucional de uma parte ou sentido — como se pode fazer isso no bojo de ADC? Logicamente incongruente. Frise-se: nenhum país do mundo tem ADC; não há declaração positiva de constitucionalidade. A ICC foi feita exatamente por isso. Já que não há ação positiva, criou-se uma maneira de salvar textos. No Brasil, fez-se o contrário nas ADC’ 43 e 44.

Mas, o que quereria significar o que segue no dispositivo do voto? Leiamos, de novo: Uma interpretação conforme que afaste a interpretação que os autores queriam. Ou seja: os autores queriam que onde está escrito que o artigo 283 diz x, o STF dissesse que, de fato, está escrito x. Ou dissesse que énão-x. Só que o STF, por maioria, deu interpretação conforme ao mesmo dispositivo 283 para dizer que ele não diz o que os autores dizem que ele diz. Mas, afinal, o que então, diz o artigo 283? Sua interpretação deverá ser a contrario sensu, uma vez que o relator diz que deve ser afastada a interpretação que os autores propõem?

Vejamos, de novo:

Constituição da República Código de Processo Penal
Artigo 5º
LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Artigo 283

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgadoou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Peço para os leitores compararem os três dispositivos. Somem os dois dispositivos constitucionais e vejam se o dispositivo do artigo 283 não encaixa como uma luva. Basta tirar um pedaço do artigo 283 e lê-lo:Ninguém poderá ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado (...). Comparem, agora, com os dois incisos do artigo 5º. E tirem suas conclusões. E digam se cabe ICC. E, se cabe, o que resta do texto?

Ou seja, não quero rediscutir a causa em um artigo no ConJur. Quero apenas – no plano teorético - falar do problema que o próprio Supremo Tribunal criou. Para a Corte não aplicar o artigo 283, a sua maioria tem (teria) de dizer que esse artigo vai contra a Constituição. No todo ou em parte. Por isso existe a ADC. O que o Supremo não pode fazer é, ao mesmo tempo dizer que ele vale e que ele não vale, quer dizer, “ele vale se lido em conformidade com a Constituição”. Mas, por favor, era isso que queríamos nas ADCs. Isto é, a leitura conforme não é exatamente a que está acima? Por que o Supremo Tribunal não diz que o artigo 283 é inconstitucional? Se ele não tem nada a ver com a execução provisória, como disse o Ministro Barroso (ele chegou a dizer que quem defende isso faz uma ficção!), então porque não diz claramente que o dispositivo contraria a Constituição? Ou que ele é absolutamente inaplicável. Por que “salvá-lo” de si mesmo?

Parece que o Supremo Tribunal Federal criou uma nova técnica de interpretar: em vez de verfassungskonforme Auslegung, estabeleceu umaAuslegung gegen die Verfassung (interpretação contra a Constituição) ou, em outra versão, verfassungsnichtkonforme Auslegung – interpretação em desconformidade).

O ministro Marco Aurélio já alertou, implicitamente, para o problema que se criou. Há seis votos que, acompanhando o voto dissidente do ministro Edson Fachin, declaram a constitucionalidade do artigo 283 mediante interpretação conforme a Constituição. Eis o imbróglio.

É evidente que sabemos que existem modos intermediários para não dizer que algo é inconstitucional. Por isso expliquei no início o sentido das duas técnicas mais famosas. Mas não sabíamos que havia um modo intermediário para dizer que algo era constitucional no bojo exatamente de ADC. Afinal, se uma lei tem presunção de constitucionalidade (em uma democracia constitucional), por qual razão se daria a ela uma interpretação conforme para dizer que ela é constitucional se é exatamente o que os autores da ADC alegam? Eis o busílis.

Numa palavra final, poderia ter analisado o julgamento por outras óticas. Por exemplo, a partir da distinção em julgamento por princípio e por política, de que fala Dworkin (e eu tenho me esfalfelado em falar disso todas as semanas). Nitidamente o STF, por sua maioria, fez um julgamento por política, conforme se vê nas argumentações. Disseram como deve ser o Direito Penal. E não como ele é a partir do que o parlamento votou.

E, aqui o argumento derradeiro: nenhum ministro dos que formaram a maioria disse que o artigo 283 feria a Constituição em algum ponto. Não há uma palavra no sentido de que o artigo 283 era, minimamente, inconstitucional. Ora, isso tem consequência: Se em nenhum ponto ele fere a CF, então ele é constitucional. Ou o STF deve confessar que agiu como Poder Constituinte. Simples assim. Tertius non datur. Dar-lhe uma interpretação conforme sem dizer em que ponto ele é inconstitucional é fazer um julgamento citra e extra petita.

Uma coisa não pode ser x e ao mesmo y. Se nada no artigo 283 é inconstitucional (pelo menos não vi — e peço desculpas se me passei em algo — nenhuma menção a que alguma expressão, parte ou todo do artigo 283 seria contrário a CF), todo ele é constitucional. Em que sentido caberia interpretá-lo em conformidade à Constituição, se ele diz o que a Constituição diz? Interpretando-se-o em conformidade à CF, o STF salva o dispositivo de si mesmo. Uma estranha tautologia negativa. Ou uma fagocitose jurídica.

*Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

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