Nevoeiro nas colinas: as três tarefas de Eva
Na cidade cercada por três colinas, o nevoeiro era constante em todas as manhãs. O tênis furado na sola, a calça ligeiramente rasgada, a camisa rota e o velho casaco fedendo a suor, não me incomodavam tanto quanto as espinhas doloridas cobrindo o meu rosto quase por inteiro. Eu era uma criança se transformando em rapaz e disso não me dava conta, nem mesmo quando um calor inexplicável tomava conta da minha face sempre que me via diante de Eva. Estudávamos na mesma escola desde o primeiro ano primário. No começo, detestava aquela garota ranheta e mal vestida, dos cabelos compridos e sem vida, pedindo pente constantemente e dona de desjeitos ao se sentar. Mas conforme ela foi crescendo, meus olhos começaram a enxergá-la de maneira diferente. Na sala de aula, me sentava longe dela, no outro canto, e de lá, no silêncio dos meus sentimentos inconfessáveis, ficava observando todos os seus movimentos. Ela não era bonita, mas diferente: depois dos catorze, os cabelos ganharam brilhos, viviam amarrados na nuca por um laço de tecido cuja cor variava: às vezes vermelho, azul, amarelo, cada dia uma cor diferente, inundando meus olhos num brilho irresistível; tinha a boca fina e o rosto sardento, os olhos da cor da escuridão e a magreza comum aos desnutridos. O som da sua voz era quase sempre rouco, mas gostava mesmo do seu jeito de andar, rebolando sem se esforçar, driblando o vento, ajeitando a blusa, mordendo levemente os lábios por puro costume. Eu podia fazer algumas exigências de beleza - apesar da roupa velha e do casaco surrado - meus cabelos loiros combinavam com os olhos quase verdes, resultando numa aparência bastante próxima aos príncipes de contos de fadas. Ao menos eu assim imaginava. Eva parecia viver num mundo só dela, não tinha amigos, falava pouco, morava longe de todos. Certo dia, notei o exato momento dos seus passos dançarinos saindo da escola, um tanto desconfiada, olhando para os lados e escondendo algo na mochila. Não dava para definir nada com exatidão, a neblina ainda cobria a pequena cidade, ofuscando a visão. Mas eu era um garoto curioso. Segui seus passos com todo cuidado, esgueirando meu corpo magro pelos muros, arbustos e postes. Ela olhava para trás quase sempre, dando mostras o desejo de não ser seguida. Aos poucos as ruas da cidade foram findando, restando aquele longo campo de grama e logo após o trio de colinas. As gramas ainda pingavam gotas de orvalho. A visão tornou-se ampla, não tinha mais como me esconder. Assim que percebeu minha presença, Eva paralisou seus movimentos, ficou quieta, imóvel feita pedra bruta.
Criei coragem e prossegui caminhando até perto de onde ela estava.
- Você está me seguindo? – disse, num apertar de rosto.
Fiquei quieto por um tempo, apreciando sua voz rouca, quase sussurrada.
- Não... Eu estava indo na casa de uma tia.
- Mentira! Não existem casas perto das colinas.
- Ela mora depois das colinas, na cidade grande, atravessando a estrada, sabe?
Acho que aquela foi a primeira vez que menti descaradamente para uma mulher. Senti a pele queimar, mas não pensei recuar. -
Ela se aquietou por instantes, fingindo acreditar na minha mentira. Depois rompeu o silêncio:
- Queria lhe pedir um favor... – A voz permanecia rouca, embora firme.
Abri meu melhor sorriso. A curiosidade de antes se transformou em cumplicidade. Tudo indicava algum tipo de aventura e eu só queria participar.
Assenti sem palavras, balançando a cabeça e armando no rosto um riso besta. Eva era o sol e eu girassol. Caminhou para bem próximo de mim, senti sua respiração de hortelã. Instintivamente dei dois passos para trás e ela me seguiu até pousar suas mãos nos meus ombros. Eu adorava o jeito dela andar e agora gostava do jeito que olhava para mim. Fixou o rosto bem perto do meu e pude ver de perto seu par de olhos, surpreso ao constatar: não era tão negro quanto antes imaginava; possuíam um estranho brilho, tão envolvente quanto os olhos de um felino. Timidamente mostrou-me um pacote que escondia na mochila. Eram mudas de ipê. Estranhei e ela percebeu, já tentando explicar:
- Lembra-se da aula da professora de literatura semana passada?
Eu me lembrava de cada detalhe, foi uma aula empolgante, na qual dona Teresa afirmou, baseada na frase de um poeta desconhecido: “Para ter uma vida completamente realizada, é preciso plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho”.
- Lembro sim, adoro as aulas de literatura.
Um belo sorriso abriu-se diante de mim, envolto naquela estranha luz que desprendia dos olhos de Eva. Quando caminhou para perto de mim, de maneira tão natural e decidida, tive a certeza: ela sabia o tanto que eu gostava do seu jeito de andar.
- Pensei muito e resolvi fazer todas aquelas coisas. – disse, na voz rouca de certeza. -
- Aquelas coisas? – Perguntei envolto numa corrente de curiosidade -.
Ela espremeu os olhos, franziu a testa, surpresa com a minha incompreensão:
- Plantar a árvore, escrever o livro, ter um filho.
Percebi o brilho intenso em seus olhos aumentar e a voz soar ainda mais rouca. Permiti que a pontada no peito, gostosa e ao mesmo tempo dolorosa, me atingisse por completo, admirando, sem impedimentos, o jeito dela andar enquanto prosseguia pelo caminho que ia dar nas três colinas, as mãos de brilho de esmalte voando no ar, me convidando a segui-la.
- Não fique ai parado feito bobo, venha me ajudar!
Deixei que se afastasse e a segui, calmamente. O jeito dela andar realmente me cativava.
Quando chegamos à primeira colina, ela escolheu o espaço vago entre duas árvores gigantes: um pé de aroeira e outro de eucalipto e começou a cavoucar com as mãos o terreno amolecido pela chuva da noite anterior. Quando tentei ajudá-la, me interrompeu:
- Pensei melhor, você não pode me ajudar, essa é a minha primeira tarefa e tenho que realizá-la sozinha. – havia uma sinceridade severa no tom da sua voz.
Recuei alguns passos antes de responder:
- Também vou fazer igual, amanhã mesmo.
Ela sorriu enquanto enxugava o suor do rosto:
- Posso vir para ver?
- Claro que sim, faço questão.
O sino da igreja da nossa cidade começou a badalar, informando que já era meio dia quando ela terminou de plantar a semente.
A primeira tarefa de Eva estava cumprida.
Atrás das colinas havia uma estrada movimentada, mas o barulho dos carros pouco nos incomodou. Ficamos sentados lado a lado por um curto espaço de tempo, o suficiente para que meus dedos roçassem sem querer nas mãos de Eva e ela, instintivamente, juntasse suas mãos às minhas. Nossos olhos se encontraram e ficamos em silêncio. A fita verde prendendo seus cabelos voou até meu rosto e ela, desajeitada, tentou retirá-la. O mundo se abriu naquele instante, senti o cheiro de hortelã escapando de seus lábios, aquietando o vento, calando o tempo, me desarmando completamente, sem reação diante dos olhos brilhantes e da boca pedindo beijos à frente do meu rosto.
O vento logo voltou, apagando o momento, riscando de nossas vidas o beijo que não tive coragem de buscar.
De repente, Eva ajeitou o corpo para cima num movimento brusco e tudo se perdeu de vez:
- Vamos voltar, nossos pais podem ficar preocupados.
Saímos correndo colina abaixo, ela num grito de menina, que até hoje ainda ouço em pensamentos, correu na frente, eu atrás, fingindo que não conseguia alcançá-la.
Despedimo-nos no cruzamento da rua principal, cada um para um lado, eu novamente prometendo plantar minha árvore já no dia seguinte, promessa que fui adiando até me esquecer.
De repente dez ou doze anos se passaram, na rapidez dos sopros do tempo, e a vida, de alguma forma, nos separou.
E hoje, quando levo meus filhos à escola, que fica na cidade grande do outro lado das colinas, sigo pela estrada que cruza aquele mesmo caminho de antes, passo devagar, às vezes estaciono o carro e fico contemplando o imenso pé de ipê amarelo, forte e vistoso, bem no meio da aroeira e do eucalipto.
Uma ponta de saudade me invade retirando do fundo da minha alma um suspiro de lamento.
Não sei se Eva cumpriu as outras duas tarefas.
Quem sabe tenha filhos, que não são meus, e tenha escrito o livro que nunca li, mas imagino que começa assim: “Na cidade cercada por três colinas, havia uma escola e nela um menino estranho que adorava me ver caminhar...”.
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