Benzedeiras, espelhos e temporais: memórias ancestrais
Enquanto do outro lado do mundo estoura uma nova guerra, me pego, da janela do meu quarto, com o olhar preso ao avanço de nuvens carregadas no horizonte.
Relâmpagos, cheiro de chuva, antigos medos ameaçando retornar.
Ah, mas hoje eu tenho onde me esconder...
Se todos os que vivem juntos se amassem, as tempestades durariam menos que o brilho de um relâmpago, e as guerras teriam fim, apagadas pelo espelho coberto por lençol.
Minha bisavó se chamava Luciana e era benzedeira.
Sua filha mais nova, a minha avó Aurora, contava que ela a ensinou a enfrentar os temporais afirmando, num brilho de olhos, que a morte estava na luz dos raios, e o trovão era apenas o barulho de aviso do perigo que já passou.
Luciana tinha olhos azuis bem claros e os cabelos grisalhos esparramados no rosto, quase sempre assoprados pelo vento. Infelizmente não a conheci, morreu pouco depois do meu nascimento e não me restou sequer um retrato, apenas a fala de todos em casa, que a viam passear entre as sombras do quintal nos primeiros minutos da madrugada.
Aurora nasceu de sete meses porque tinha a pressa dos raios. Deixou ensinamentos que foram passados através das gerações, alguns ainda sobrevivem, me causando enlevo ao recordar:
Quando a chuva caía forte, minha mãe corria por toda casa com lençóis nas mãos, tapando os espelhos para não atrair os relâmpagos.
“Sua bisavó me ensinou” contava séria, fixando seus olhos grandes nos meus de criança, sem deixar rastros de dúvidas.
Logo após jogar os lençóis nos espelhos, dona Dalva fechava o guarda-roupas, que tinha um espelho na parte de dentro da porta e, assim, enganava os relâmpagos.
Depois se recolhia comigo num canto, os olhos voltados para o telhado, com medo de tudo desabar.
O cheiro da madeira molhada ainda consigo sentir, assim como o medo da telha de barro não resistir.
Na lembrança ainda tremem aqueles dias transformados em noite, raios, trovões e minha mãe, a minha única real segurança.
Durante a tempestade, nossos pés descalços logo eram vistos usando chinelos de borracha, porque bisavó Luciana ensinou que pés no chão também atraem os raios.
Minha mãe não sabe responder se morreram todas as benzedeiras. Quando pergunto, vejo novamente nos olhos de dona Dalva aquele mesmo espanto dos dias de trovão, como se procurasse algum espelho para tapar, enquanto navega na sua mente à procura da cura do quebranto nas mãos trêmulas de uma benzedeira
Antigamente elas viviam espalhadas em casas de quintais floridos, e nada cobravam. Tinham a exata noção daquele exercício de divino dom, que de tão raro e bom, não tinha preço.
Ventre virado e quebranto eram males que somente as benzedeiras sabiam curar.
Certa feita, do nada. me surgiu uma ferida no braço, “mijada de aranha” – disseram – nenhum mertiolate, pomada ou algo do gênero foi capaz de curar, mas a ferida sumiu, de um dia para o outro, levada pelas mãos de uma benzedeira, senhora dos cabelos bem brancos e ligeiramente desgrenhados, tal e qual os da minha bisavó. Não sei o nome, mas lembro bem do rosto e o sorriso doce daquela senhora, a oração feita de fora para dentro, o balbuciar quase silencioso escapando de seus lábios, até o rito final, o sinal da cruz feito três vezes após o derrame no meu braço de um líquido banhado em plantas, exalando um inesquecível cheiro bom de alecrim.
Quanto tempo duravam as tempestades de antigamente?
A eternidade não tem tamanho.
Às vezes me pego mergulhado nos olhos da minha mãe, hoje cansados, trêmulos, serenos.
As tempestades foram benzidas por aqueles olhos.
“Vai passar, rápido como a luz do relâmpago”, diziam e logo depois tudo se aquietava, a paz retornava junto com a brisa suave, levando para longe a tempestade, e nós, pobres crianças, nos pegávamos olhando a claridade efêmera que escapava das nuvens, depois do temporal, aguardando a noite cair.
Hoje, quando ouço o barulho dos trovões, já não sinto medo, amparado nos ensinamentos de três mulheres: Luciana, Aurora e Dalva, elas me ensinaram a enfrentar as tempestades.
Outro cuidado, depois da chuva, éramos terminantemente proibidos de deixar os chinelos de cabeça para baixo. Se não fossem desvirados, alguém da família ou algum conhecido morreria.
Aurora levava aquilo tão a sério – longo suspiro – se culpava porque não percebeu o chinelo da mãe Luciana revirado no quintal, poucos dias antes dela morrer.
E para esconder a tristeza, escrevia cartas de letras cursivas, que pareciam dançar suavemente na folha rota do papel, representando a dor da saudade.
Ah, quanta falta eu sinto da minha avó, a filha caçula de Luciana e que carregava seus ensinamentos de benzedeira. Lembro que minha avó decifrava o cantar das aves, e então, sabíamos o mau agouro do pio estridente da coruja e a melodia do bem-te-vi, o primeiro anunciava notícias ruins, o outro, a vida através da gravidez.
Num tempo que as lamparinas clareavam a sala, Aurora contava histórias com a voz pausada e terna; contos fantásticos, repletos de magia, narrativas que carrego comigo sempre e muitas vezes deixo escapar na forma de contos e crônicas.
Espelhos e tempestades morrem tapados por lençóis.
Ainda hoje, quando chove, sinto uma estranha vontade de cobrir os espelhos de casa e desvirar os chinelos quando estão emborcados.
Aurora foi ao encontro de Luciana no começo de 2004 e hoje moram acima das nuvens, bem perto das estrelas.
E enquanto estoura outra guerra, reflito diante da minha imagem no espelho: o mundo anda precisando de benzedeiras.
Talvez elas ainda existam e estejam por ai, se escondendo da intolerância dos dias de hoje, em cantos de quintais floridos, curando as feridas que o homem não consegue lidar, tapando os espelhos em dia de chuva, desvirando os calçados para ninguém morrer e espalhando pelo ar o doce cheiro de alecrim.
André Alvez
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