Músicas e novelas normalizam agressão e estupro dentro do casamento
Promotora explica que esse comportamento é reflexo de uma estrutura cultural profundamente enraizada

“Aproveita, aproveita, aproveita,
É o melhor momento da sua vida
Ou dá essa xereca ou eu te jogo aqui em cima.
(...)
RESUMO
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A normalização da violência contra a mulher em produtos culturais, como músicas e novelas, tem contribuído para a perpetuação do estupro marital. Segundo especialistas, muitas vítimas só reconhecem a violência sofrida anos depois, frequentemente durante processos terapêuticos. A promotora Clarissa Carlotto e a delegada Analu Lacerda Ferraz alertam que a ideia do "dever conjugal" dificulta o reconhecimento da violência. Os casos são subnotificados devido ao medo, dependência emocional e dificuldade em identificar o abuso, que pode incluir violência psicológica e coerção.
Não tô brincando,
Não tô brincando
Se ficar de palhaçada eu taco no oceano”
O trecho da música pode até soar inofensivo aos desavisados, mas reforça uma cultura que obriga mulheres a aceitarem tratamento violento travestido de “momento especial”. Na canção, a cena se passa em um helicóptero, e a mulher, que queria apenas ver o céu, é ameaçada de ser jogada da aeronave caso não mantenha relação sexual com o parceiro.
Esse tipo de comportamento abusivo, que vai da coerção ao estupro, ainda se repete dentro de casa em muitos casamentos. Para a promotora de Justiça Clarissa Carlotto, titular da 72ª Promotoria de Justiça de Campo Grande e coordenadora do NEVID (Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), novelas, músicas e outros produtos da cultura popular escancaram o que se tornou normal no senso comum: a ideia de que a mulher tem obrigações com o homem, especialmente o marido, mesmo quando quer dizer não.
“A gente costuma reproduzir o que vê. E o reforço da violência contra a mulher está em todo lugar — nas redes sociais, nas músicas, nas novelas, nos programas de TV. A mulher vê, consome e acaba naturalizando”, afirma.
Ela explica que esse comportamento é reflexo de uma estrutura cultural profundamente enraizada. “A gente consome o tempo inteiro e acha normal. Mas não é normal”, reforça, citando outras letras que exaltam a posse masculina.
“Tem aquela: ‘Ajoelha e chora, quanto mais eu passo o laço, mais ela me adora’. Ou ainda a que diz que não é ciúme; é excesso de cuidado: ‘Não me leve a mal se eu destravar seu celular com sua digital’. Ou seja, é tudo por amor, então está valendo”, ironiza a promotora.
Em novelas, cita cena da novela Gabriela, de 2012, em que os personagens Dorothéa (Laura Cardoso) e Coronel Amâncio (Genézio de Barros) conversam sobre traição conjugal. De um lado, ela que é mãe do coronel, afirma que homem que não bate mulher se torna "corno". E ele, por sua vez, afirma que se houver infidelidade, tem que dar tiro e matar de vez", mas "bater não".
É violência? — Nem sempre os números mostram, mas é comum que mulheres só reconheçam, anos depois, terem sido vítimas de estupro dentro do casamento. “O que essa mulher aprende? Que é esposa, que tem de cuidar da casa, dos filhos e ainda manter relações sexuais com o marido, porque isso faz parte do contrato. Olha que triste!”, observa Clarissa.
Ela lembra que, segundo o Código Penal, o estupro ocorre mediante violência ou grave ameaça. Mas, em um relacionamento abusivo, essa violência pode ser psicológica ou emocional. “Essa mulher é constantemente humilhada, massacrada. Ele pode não bater nela, mas é violento nas palavras, obriga a usar anticoncepcional ou a fazer sexo com outras pessoas para manter o relacionamento. São várias formas de violência”, afirma.
Só com terapia — A delegada Analu Lacerda Ferraz, adjunta da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), explica que os casos de estupro conjugal são ainda mais subnotificados do que outros tipos de abuso. “A experiência da Deam confirma que a maioria dos casos não chega a ser registrada, por medo, dependência ou dificuldade de reconhecer a violência”, explica.

Segundo ela, a ideia de “dever conjugal” torna tênue a linha entre consentimento e violação. “Na maioria dos crimes sexuais dentro dos relacionamentos, a vítima só entende tardiamente que foi abusada — muitas vezes durante um processo terapêutico, como mostrado na reportagem inicial de vocês.”
O Campo Grande News já contou a história de uma mulher que só percebeu, com ajuda psicológica, que havia sido estuprada diversas vezes pelo marido. Nas relações, chorava, implorava para que ele parasse, mas era chamada de “fresca” e acusada de “mimimi”.
A publicação gerou identificação. Outras leitoras procuraram a redação relatando experiências parecidas. “Lendo a matéria da mulher que não sabia que era estuprada dentro do próprio casamento, me fez recordar o quanto isso já me aconteceu”, contou uma delas.
Ela relatou que sofria humilhações constantes e era cobrada por sexo mesmo doente. “E se eu ficasse doente, ele sumia e só voltava quando me via bem. Como é humilhante essa situação”, desabafou.
Busque ajuda — A Casa da Mulher Brasileira funciona 24 horas por dia e abriga a Deam, onde é possível registrar ocorrência — mesmo sem representar imediatamente contra o agressor.
Também há o Disque 180, a Polícia Militar pelo 190 e o site da Medida Protetiva Online, que pode ser acessado aqui. Não é necessário registrar boletim de ocorrência para solicitar a medida.
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