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Capital

Covid fez mãe pensar na morte e deixar "testamento" na gaveta

Em plena covid, muitos problemas seriam evitados se a gente falasse sobre a única certeza da vida: a morte

Paula Maciulevicius Brasil | 25/03/2021 18:03
Recado que Ana deixou ao filho mais velho junto de anotações bancárias e instruções. (Foto: Arquivo Pessoal)
Recado que Ana deixou ao filho mais velho junto de anotações bancárias e instruções. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Se eu morrer". A afirmação vem seguida de um grampo sinalizando que a leitura deve ser feita quando a mãe vier a faltar. Escrito em uma bloco de anotações no dia 28 de junho do ano passado, Ana, como assim prefere ser identificada nossa personagem, explica ao filho, à época há três meses em semi-confinamento, que ela gostaria de deixar registradas recomendações e conselhos.

O testamento deixado por Ana ocupa uma gaveta do escritório da família. Mãe de dois filhos, um de 22 anos e outra de 4, a profissional liberal de 46 anos pede para não ser identificada, mas aceita compartilhar como decidiu organizar em vida as burocracias que deixaria para trás caso fosse levada pela covid-19.

Depois da introdução, explicando o período e a motivação de deixar aquilo ao filho, Ana relata dados pessoais, de contas bancárias, senhas e toda a questão do financiamento da casa. "Tudo de compromisso que eu tenho, o que tinha de dar baixa, onde ele teria que ir, o que aconteceria com a casa, até onde eu comprava ração e o que fazer com a irmã", detalha.

A ideia era facilitar as coisas para o filho até se ela vier somente internada por covid. Embora ainda não tenha se despedido de ninguém pela doença, a pandemia fez com que Ana enxergasse a necessidade de deixar instruções. "Penso que nunca senti a morte tão de perto. Foi o medo dele ter que lidar com o imponderável e eu quis facilitar as coisas pra ele", justifica.

Antes de escrever tudo, a mãe ligou na Caixa Econômica para se certificar do financiamento e das condições de quitação. A conversa com o filho foi difícil, mas definida por ela como "muito necessária".

Depois que a pandemia aproximou a morte de todos de uma forma brutal, internação em UTI já é preocupação para famílias. 
Depois que a pandemia aproximou a morte de todos de uma forma brutal, internação em UTI já é preocupação para famílias.

"Fiz pensando em deixá-los da melhor forma possível para que ele não tivesse problemas ou não soubesse o que fazer. Quis prepará-lo para a minha partida, foi um nível diferente de sentimento, mas também foi bem difícil", reflete.

Espírita, Ana volta no tempo ao se recordar que em uma palestra, muito anos antes da pandemia, ouviu o questionamento no centro sobre quantos ali tinham seguro de vida já que todos sabiam que um dia iriam morrer. Depois de se tornar mãe, ela fala que passou a encarar a morte de forma muito mais responsável. morrer virou responsabilidade que ela quer deixar com menos peso possível.

"Não somos mais sozinhos e na nossa partida, vamos deixar pessoas queridas aqui. A gente tem que realmente conversar e instruir, apesar de eu nunca ter tido isso com meus pais, fiz com meus filhos. É difícil, todo mundo sabe que vai morrer, mas ninguém quer, essa é a verdade".

Aspectos jurídicos - Advogado há 35 anos, Emerson Ottoni Prado contextualiza que culturalmente temos a dificuldade em pensar sobre a morte, mesmo sendo o único evento certo das nossas vidas. "Se pensarmos que a morte é natural, podemos nos preparar para ela, seja no aspecto espiritual e também no patrimonial e afetivo", considera.

A pandemia aproximou a partida de uma maneira até brutal. Diariamente, são milhares de óbitos em todo o País, todos vítimas de uma doença para a qual, apesar de já ter vacina, não escolhe idade nem mais fatores de comorbidades. Ainda há o agravante de não se ter leitos de UTI disponíveis, além da falta de oxigênio e medicações.

"Ainda que falemos pouco sobre isso, e é natural, é importante pensarmos em como resolver pendências que surgirão inevitavelmente, antes que isso ocorra. Ninguém precisa ficar pensando nisso o tempo todo. Aliás, quem se organiza para a morte vai ter menos angústia na vida, porque se tranquiliza e sabe que não vai deixar problemas para as pessoas que ama", acredita.

Advogado, Emerson explica a importância de deixar por escrito orientações para a família. (Foto: Arquivo Pessoal)
Advogado, Emerson explica a importância de deixar por escrito orientações para a família. (Foto: Arquivo Pessoal)

De uma forma bem simples e resumida, o advogado enfatiza que cada pessoa deveria deixar uma pasta com todos os documentos que tem, por exemplo: cópias das declarações de renda, lista das dívidas e dos créditos que tem a receber, contratos de financiamento de carros, imóveis e aposentadorias privadas.

"Com isso na mão, quando vier a falecer, quem ficar poderá organizar facilmente as coisas. Importante guardar apólices de seguro, as últimas faturas de cartão de crédito, qualquer aplicação financeira que tiver. Seria oportuno também que, na medida das possibilidades, fazer um seguro de vida. Deixar algum dinheiro que seus familiares vão precisar ao menos na fase do luto", orienta.

A lista deixada por Ana não tem uma validade de testamento por exemplo, que é um documento no qual se diz sobre nossas últimas vontades e pode ser feito em cartório. No entanto, Emerson explica que a pessoa pode, também, fazer um testamento particular, escrevendo tudo o que quer para depois de sua morte, de próprio punho e com três testemunhas.

"Deixe orientações sobre qualquer assunto por escrito, isso poderá ser até entendido como um codicilo, um documento de próprio punho, onde pode escrever sobre seu enterro, sobre esmolas de pequeno valor para pobres de certo lugar. Nos codicilos é possível também dizer para quem ficarão roupas, joias de pequeno valor e outros objetos", ressalta o advogado.

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