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Capital

Motorista de sorriso aberto foi muito mais do que o "caso de fungo negro em MS"

História de Cícero merecia ser contada pela vida que ele teve, não pela morte de covid

Paula Maciulevicius Brasil | 05/08/2021 12:32
Motorista de profissão e por paixão, não tem foto em que seu Cícero não esteja sorrindo. (Foto: Arquivo Pessoal)
Motorista de profissão e por paixão, não tem foto em que seu Cícero não esteja sorrindo. (Foto: Arquivo Pessoal)

Não tem foto que seu Cícero não esteja de sorriso aberto. As imagens apresentam a quem não o conheceu, o que ficou na lembrança da família e dos amigos que se despediram cedo demais do motorista. Muito mais do que o primeiro "caso de fungo negro em MS", Cícero foi marido, genro, pai, avô e amigo.

Foi a família quem procurou o Campo Grande News para prestar uma homenagem para o patriarca Cícero Ermenegidio da Silva, de 71 anos. Isso, porque, além da dor da perda, a notícia do fungo negro ganhou repercussão na cidade e sua história merecia ser contada pela vida que teve, não pela morte.

Alagoano, Cícero viveu tempos difíceis financeiramente na infância até os pais deixarem o Nordeste para tentar uma vida melhor em São Paulo. Sem muito sucesso na região, aceitaram o convite de morar e trabalhar numa fazenda no Distrito de Fala Verdade, em Corguinho.

Cícero e Maria Tereza chegaram a fazer ensaio com fotógrafo para comemorar aniversário de casamento. (Foto: Agatha Roana)
Cícero e Maria Tereza chegaram a fazer ensaio com fotógrafo para comemorar aniversário de casamento. (Foto: Agatha Roana)

Como irmão mais velho, sempre cuidou e zelou das quatro irmãs até todas subirem ao altar. E foi lá, no Distrito de Fala Verdade, que seu Cícero conheceu Maria Tereza, o grande amor da sua vida.

"Eles se casaram em 1974 e juntos, tiveram cinco filhos, quatro meninas e um menino. Assim como toda a família, enfrentamos dificuldades, mas sempre estivemos unidos em todos os momentos", descreve a filha Eliane Ermenegidio da Silva, de 40 anos.

Para construir a narrativa, as filhas Raquel, Beatriz, Eliane e Dayana se juntaram e escreveram um texto, que daria um livro, sobre a história de vida do pai. "Foram 47 anos de união, ele sempre frisava que faltava pouco para a festa de bodas de ouro", lembram as filhas.

Os domingos, feriados, aniversários, natais, eram como ilustram parte das fotos da matéria. "Tudo era motivo para reunir os filhos e os netos para almoçar, com o churrasco que ele amava preparar", descreve Eliane.

Depois de se casar com dona Maria Tereza, eles se mudaram para Campo Grande, em 1977, e moraram por muito tempo no Bairro José Abrão, onde Cícero exercia uma de suas paixões, o futebol.

"Apaixonado por futebol, manteve durante os anos 80 e 90, os campeonatos com times do bairro, onde sempre levava um troféu para casa. Crescemos tendo um grande herói como pai", descrevem as filhas.

Os dois se conheceram no Distrito de Fala Verdade, em Corguinho, e ficaram juntos por 47 anos. (Foto: Agatha Roana)
Os dois se conheceram no Distrito de Fala Verdade, em Corguinho, e ficaram juntos por 47 anos. (Foto: Agatha Roana)

Mas a maior paixão mesmo era ser motorista. Tanto é que Cícero dirigiu profissionalmente até se aposentar. A estreia dele no volante foi aos 14 anos, dirigindo trator na fazenda. Durante toda vida, foi motorista profissional e proporcionou às filhas, as viagens mais incríveis que elas puderam viver.

"Viajávamos de caminhão para as cidades do interior, era uma aventura. Ele contava histórias do cerrado, da caatinga, dava aulas de geografia. Falava de tudo", recorda a família.

Cícero também dirigiu caminhão tanque que transportava combustível e é lembrança nas ruas do bairro por sempre buzinar para a molecada. "Eles corriam atrás do caminhão e o pai buzinava. Muitos diziam que quando crescessem iam ser caminhoneiros como ele", recorda Eliane.

Como motorista de ônibus, seu Cícero  ficou conhecido na cidade pela simpatia e gentileza com que recebia os passageiros todos os dias. Dono de um coração enorme, como contam as filhas, ele estava sempre presente para ajudar quem precisasse.

Churrasco era uma das coisas que Cícero mais amava fazer para receber família e amigos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Churrasco era uma das coisas que Cícero mais amava fazer para receber família e amigos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Em março do ano passado, muita coisa mudou com a chegada da pandemia. Foram 14 meses dentro de casa. Segundo a família, tanto Cícero, quanto Maria Tereza saíam apenas para o necessária e, ainda assim, tomando todos os cuidados.

Para se distrair, o aposentado começou a fazer pequenos consertos em eletrodomésticos, e da distração, ele virou especialista em consertar ventiladores.

As filhas dizem que mesmo em casa, o pai não perdeu a alegria. "Fazíamos pequenos encontros, revezando e com todos os cuidados. Ele adorava pedir lanches e pizzas, mas o predileto era preparar um belo churrasco", descrevem. Antes da pandemia começar, foi assim que ele preferiu comemorar seus 70 anos, com um churrasco regado à música sertaneja tocada por amigos.

Covid - No dia em que testou positivo, no fim de maio, a família já levou Cícero para ser acompanhado pelos médicos. Os exames seguiam dentro da normalidade até que no 9º dia de sintoma, o aposentado foi levado ao posto de saúde, dia 17 de maio. De lá, precisou ser internado no Hospital do Pênfigo, onde foi intubado no dia 20.

"Não podíamos imaginar que estávamos prestes a ver nosso pai passar por tudo o que ele passou. Afinal, ele estava vacinado com as duas doses, logo nos levava a crer que não deveria complicar tanto seu estado de saúde", diz a família.

O que a família mais temia, aconteceu. O pai não evoluiu bem, o quadro foi se agravando e 11 dias depois da internação, dia 29 de maio, o médico informou sobre a suspeita do fungo.

"Criamos um grupo de WhatsApp, onde tinham familiares e amigos, e durante os 16 dias de internação, foram realizadas orações 24 horas por dia, pessoas de todas as religiões com um único objetivo, implorar pela vida do nosso pai e, então, constatamos o que já sabíamos, ele era muito querido", explicam as filhas.

Até que na quarta-feira, dia 2 de junho, um dia depois do caso da suspeita ser noticiado, seu Cícero partiu. "Às 12h13, nosso pai se foi, deixando o nosso coração aflito, despedaçado e seus familiares e amigos saudosos", diz Eliane.

Cícero com toda a família. Esposa, netas, filhas. Montagem mata as saudades do Cícero de sorriso aberto. (Foto: Arquivo Pessoal)
Cícero com toda a família. Esposa, netas, filhas. Montagem mata as saudades do Cícero de sorriso aberto. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nas palavras das filhas, o pai deixou muitas coisas, entre elas o carinho e a preocupação com a mãe, o amor pelos oito netos, as vídeochamadas que sempre fez questão de fazer com as irmãs e as sobrinhas, para quem dispensou uma atenção "incrível". "Não poderíamos esquecer o Bob, seu cachorro, que ainda o procura pela casa", completa Eliane.

Despedida - Tão perto do Dia dos Pais, a filha mais velha, Raquel, relembra que já estamos vivendo há um ano e meio na pandemia. "Quantas pessoas ficaram órfãs? Mesmo a gente sendo adulta, você fica órfã quando perde o pai", desabafa.

"Nosso pai não foi só mais um número na estatística, não foi só mais um paciente, e muito menos o primeiro caso confirmado de fungo negro em Mato Grosso do Sul. Nosso pai foi o melhor pai que Deus poderia ter nos dado, o melhor e mais querido esposo, o melhor irmão das nossas tias, o melhor tio dos nossos primos, o melhor sogro para os seus genros. E isso ninguém irá mudar, pois a imagem que temos é de um sorriso maravilhoso e é essa a imagem que nós familiares e amigos guardaremos para sempre", finalizam as filhas.

No domingo próximo, o dia será de lembrança dos churrascos e dos sorrisos do pai.

Confirmação - Depois da confirmação da SES (Secretaria Estadual de Saúde), de que o caso foi mesmo fungo negro, a família diz que as consequências da covid ficam a cargo dos pesquisadores.

"Cabe aos pesquisadores descobrir formas de amenizar o sofrimento que a doença vem trazendo, principalmente, aos pacientes hospitalizados que ficam suscetíveis a doenças como esse fungo. Enquanto isso, cabe a nós cidadãos tomar as medidas de biossegurança como regra e respeitar o próximo, pois todas as pessoas são muito importantes na vida de alguém", acreditam as filhas.

No canto direito, seu Cícero abraça a sogra, dona Loló, a sogra que o tratava como filho. Lembrança é do último Natal antes da pandemia, em 2019, com toda a família reunida. (Foto: Arquivo Pessoal)
No canto direito, seu Cícero abraça a sogra, dona Loló, a sogra que o tratava como filho. Lembrança é do último Natal antes da pandemia, em 2019, com toda a família reunida. (Foto: Arquivo Pessoal)


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