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Cidades

População de rua cresce com a crise e sai das sombras da invisibilidade

Rede de atendimento apresenta vários problemas, como prédios precários e colchões com percevejos

Osvaldo Júnior | 29/04/2018 14:15
Homem em situação de rua caminha na região central de Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Homem em situação de rua caminha na região central de Campo Grande (Foto: Paulo Francis)

Eles estão nos prédios abandonados, em pontilhões, nas calçadas, nos sinais, cuidando de carros, pedindo esmola, com roupas sujas, embriagados, sob efeitos de drogas, têm transtornos mentais, sem documentos, distantes da família, dormindo sobre papelões ou colchões precários... Nessas condições, há cerca de 500 pessoas em Campo Grande, parcela populacional que começa a sair das sombras da invisibilidade em decorrência do seu crescimento expressivo.

Não é difícil encontrar as causas do problema em um cenário de redução do ritmo da economia e números elevados nas estatísticas de desemprego. São 13,7 milhões de desempregados em todo o País, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – o número, relativo ao primeiro trimestre deste ano, representa alta de 11,2% sobre os três meses anteriores.

“A população em situação de rua está, realmente, crescendo em Campo Grande. É um problema social agravado pelo momento da economia do País”, comentou a defensora Eni Maria Sezerino Diniz, que realiza levantamento da rede de atenção a essa parcela populacional – o trabalho da DPE-MS (Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul) é desenvolvido em parceria com a DPU (Defensoria Pública da União).

Eni explica que a população de rua não é uniforme, o que exige atendimentos diferenciados. “É multifacetária: há pessoas com problema de drogatização, transtornos mentais, há migrantes e sem teto, que perderam os laços familiares, e egressos do sistema penitenciário”, enumera. “E o que queremos saber é quais são e como estão as políticas públicas para atender essas diferentes necessidades”, afirma em menção ao trabalho realizado pela DPE e DPU. A ação é inédita em Mato Grosso do Sul.

Colchão velho e sujo no Cetremi; outros estão na mesma condição (Foto: Divulgação/DPE)
Colchão velho e sujo no Cetremi; outros estão na mesma condição (Foto: Divulgação/DPE)

Desde a semana passada, Eni e o defensor público da União, Silvio Grotto, visitam locais de atendimento a pessoas que moram nas ruas ou que apresentam outros tipos de vulnerabilidade. Já foram visitados o Cetremi (Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante), o Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), o Centro-Dia e Patronato Penitenciário. A visita será feita, nesta semana, à Residência Terapêutica.

O que foi encontrado, até então, mostra que a precariedade não se restringe às ruas, mas também se estende aos locais de atendimentos. Falta de material, de higienização, estrutura do prédio, falta de espaço, número deficitário de profissionais e necessidade de integração da área da assistência social e da saúde foram os principais problemas verificados.

O quadro mais calamitoso é o do Cetremi. Colchões sujos e velhos, com percevejos, prédio necessitando de reforma, paredes deterioradas, são algumas deficiências encontradas. “Falta material, os colchões não estão adequados para uso, não tem higienização necessária, não há cobertas...”, lista Eni.

Defensora Eni em visita ao Cetremi (Foto: Divulgação/DPE)
Defensora Eni em visita ao Cetremi (Foto: Divulgação/DPE)
Paredes do local estão precárias (Foto: Divulgação/DPE)
Paredes do local estão precárias (Foto: Divulgação/DPE)

No Centro-dia, evidencia-se o problema do pouco espaço. “As acomodações são muito pequenas”, observa a defensora. A unidade atende pessoas deficientes, sem autonomia e que dependem de outros.

No Patronato Penitenciário e no Centro Pop, assim como nos demais órgãos, o desafio diz respeito à integração de políticas públicas, de acordo com a defensora. “O Patronato busca ajudar egressos do sistema penitenciário a retornar a vida em sociedade. O problema é que muitas dessas pessoas perderam laços com a família, não têm capacitação profissional e não conseguem emprego”, comenta ao se referir à necessidade da unidade atuar em conjunto com outras áreas.

Situação parecida apresenta o Centro Pop. Eni nota que a unidade busca resolver problemas sociais, mas que passam por atendimentos na área da saúde. “E eles [os profissionais do Centro Pop] ficam de mãos atadas. As políticas não conversam entre si”, comentou.

A defensora, no entanto, reconhece que o atendimento é satisfatório, mesmo com todos os problemas. “Os profissionais trabalham bem. Fiquei, sem me identificar, observando o atendimento no Centro Pop. Acompanhei três atendimentos e todos foram bem feitos, conforme as normativas, com muita atenção às pessoas em situação de rua”, afirmou.

Procedimento – Depois de concluídas as visitas, será feito relatório. Na sequência, os defensores se reunirão com representantes da prefeitura para avaliar o que pode ser feito. Se for o caso, será firmado termo de ajustamento de conduta e a DPE poderá entrar com processo contra o município.

Outra ação prática será a elaboração de normativa para atendimento à população de rua, algo inédito no estado. Além disso, conforme a defensora, será feito um mutirão para atender as pessoas que moram nas ruas de Campo Grande. Ainda não há data para a ação.

Campo Grande tem cerca de 500 pessoas morando nas ruas

Pessoas em situação de rua no entorno da antiga rodoviária (Foto: Paulo Francis)
Pessoas em situação de rua no entorno da antiga rodoviária (Foto: Paulo Francis)

A defensora Eni estima que há cerca de 500 pessoas em situação de rua em Campo Grande. “São cerca de 250 visíveis e mesmo número ou mais que são invisíveis”, calcula.

Os moradores de rua “visíveis” se concentram nos arredores na antiga rodoviária e no entorno da igreja São Antônio, na região central. Além dessas pessoas, há os que andam pelos bairros e, praticamente “invisíveis”, estão os que buscam abrigos em construções abandonadas e sob pontes e viadutos.

Não se trata sempre das mesmas pessoas, pois, conforme nota a defensora, a população de rua é dinâmica. Todos eles, como qualquer um, são sujeitos de direito, segundo enfatiza Eni. “Quem mora na rua tem os mesmos direitos que qualquer pessoa. Tem, inclusive, o direito de morar na rua. Tem também direito ao acolhimento, à assistência social, aos serviços de saúde”, afirma a defensora.

Próximo da igreja Santo Antônio, há grande concentração de pessoas em situação de rua (Foto: Paulo Francis)
Próximo da igreja Santo Antônio, há grande concentração de pessoas em situação de rua (Foto: Paulo Francis)

Um espectador à distância da própria família

Morar na rua não apaga as histórias, os nomes, as necessidades. Entre essas pessoas que moram nas ruas de Campo Grande, está um homem de 36 anos, que pediu para não ser identificado, por ter vergonha de sua situação. “Sou mecânico e vim pra cá pra trabalhar, mas não deu certo. Minha família é de São Paulo e eles não sabem que estou na rua”, contou.

João (nome fictício) é um espectador à distância da própria família. Vez e outra, quando consegue, em algum lugar, acessar a internet fica sabendo das novidades dos parentes. “Tenho um neto de dois meses. Um dia vou conhecer ele”, afirma, num lampejo de esperança. Também contou que tem duas filhas gêmeas, que fizeram 15 anos no mês passado. Quando ele saiu de casa, as meninas tinham 11 anos.

As falas de João, até onde se revelaram, mostram uma mistura de desejos, de sentimentos: ele quer reencontrar a família, mas essa vontade é inibida, em menor medida, pela falta de dinheiro e de documentos e, em maior parte, pela vergonha da condição em que se encontra. “Sinto vergonha, principalmente do meu pai”, confessa.

Sentado sobre um velho e sujo colchão,na calçada da igreja Santo Antônio, em Campo Grande, João falou sobre estar na rua. “Estou numa situação difícil, mas não sou morador de rua”, enfatizou. O colchão, assim como suas roupas, foram doados. “Essas coisas não duram muito. Quando a gente dorme, os outros roubam”, afirmou.

O banho tem custo relativamente alto para quem sobrevive de moedas. “Vou a um hotel aqui e pago R$ 4. Mas visto a mesma roupa. Nem parece que tomei banho”, contou. Mesmo com roupas sujas e fazendo da calçada sua casa, João deixa o recado: “Eu e ninguém da rua é lixo. Nós somos pessoas. Tem muitos que falam com a gente, que são bacanas. Mas tem outros que tratam a gente igual um lixo que fica na calçada”, queixa-se.

João tem um bem precioso: um cartão amassado, mas bem conservado. É um cartão de um fisioterapeuta. “Eu vou voltar pra São Paulo. Esse doutor – disse mostrando o nome no cartão – vai me ajudar. Ele disse que vai me dar a passagem”, finalizou.

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