De imigrantes a veteranos, ambulantes ocupam todos os cantos de Campo Grande
Crescimento da informalidade expõe mistura de histórias, sotaques e improviso nas ruas sem controle

Nos últimos meses, o número de ambulantes aumentou visivelmente e se espalhou por avenidas, parques e praças de Campo Grande. O cenário reúne trabalhadores que há anos ganham a vida nas ruas e imigrantes que cruzaram fronteiras em busca de renda e acabaram vivendo da informalidade. Tem até empresa que contrata venezuelanos para ocupar espaços públicos vendendo móveis.
RESUMO
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O número de vendedores ambulantes tem aumentado significativamente em Campo Grande, ocupando avenidas, parques e praças da cidade. O cenário reúne trabalhadores locais, migrantes e imigrantes que buscam sustento na informalidade, especialmente em áreas movimentadas como a Afonso Pena, Via Park e Parque do Sóter. Entre os ambulantes, histórias como a do boliviano Daniel Manrique, que dorme nas ruas e vende doces para ajudar as filhas, e do paraibano Júnior Silva, que comercializa redes e bandeiras, revelam as dificuldades enfrentadas por esses trabalhadores. A falta de documentação, burocracia e queda nas vendas são alguns dos obstáculos relatados.
Entre os recém-chegados está o boliviano Daniel Rofé Manrique, de 31 anos. Há quatro meses na Capital, ele mistura português e espanhol enquanto ajeita as balas, paçocas e cigarros soltos que vende na Avenida Afonso Pena. Divide o ponto com um colega e dorme na rua. “Às vezes vendo R$ 20, às vezes nada. Quero só conseguir um trabalho pra ajudar minhas filhas e ter um lugar pra ficar”, diz.
A esposa segue no país de origem, mas ele veio da Bolívia com as duas filhas, de 7 e 8 anos, que hoje moram com a avó. Daniel, porém, ficou sem teto. "Roubaram meus documentos, e sem documento não consigo emprego. Ninguém quer dar trabalho pra quem mora na rua”, conta.
Para evitar novos furtos, amarra a mesa, a cadeira e as mercadorias com uma corda e carrega tudo pendurado no corpo quando sai do ponto.
A presença de vendedores como o boliviano está em avenidas centrais, como a Afonso Pena e a Via Park, mas continua em bairros mais afastados, como o Tiradentes e o Aero Rancho. Em calçadas e praças, bancas simples se multiplicam onde antes quase não se via comércio. A expansão desperta atenção e levanta dúvidas sobre a capacidade do poder público de lidar com o avanço dessa realidade.
Na Marquês de Pombal, região do Tiradentes, o ponto é de um brasileiro, Valdir Pereira de Matos, de 50 anos, que mantém uma banca na beira da via. Ex-pedreiro, diz que trabalhava muito e, apesar do aquecimento do setor, garante que ganhava mal.
Há três anos, decidiu vender frutas e produtos variados. “Você trabalha muito, ganha pouco e não é valorizado. Aqui, pelo menos, dá pra se manter”, conta. Mas o trabalho autônomo, que começou como alternativa, também cobra caro.
Valdir vive da oscilação das vendas, há meses em que o lucro supera o salário mínimo e em outros o caixa não cobre as despesas. “Pelo menos você não tá enforcado. Lá [na firma] você cumpre horário, rala e não vê retorno”, redama
Na mesma avenida, o venezuelano Ernis Medina, de 27 anos, empilha cadeiras e mesas sob uma lona improvisada para se proteger da chuva. Ele viaja de Dourados a Campo Grande uma vez por mês com um grupo que representa uma loja de móveis do interior. Sem salário fixo ou qualquer direito trabalhista, recebe apenas comissão sobre o que vende.
“Quando vende, ganha. Quando não vende, não ganha”, resume, em português entrecortado pelo sotaque. Mantém o bom humor e a gratidão: “Pelo pouco, muito agradecido”, repete.
A rotina de sol forte e chuva repentina é enfrentada com resignação. “A gente ajuda a pessoa que trabalha pra outra pessoa”, explica, definindo, sem saber, a engrenagem da terceirização informal que empurra centenas de pessoas para as ruas.

Na Via Park, o brasileiro Fernando Andrade Brazão, de 33 anos, vende morangos em uma banca simples ao lado da irmã. Deixou o emprego com carteira assinada durante a pandemia.
Antes, o lucro era maior, lamenta “Nos dois primeiros anos dava pra viver, mas agora ficou mais difícil. Tem dia que vendo, tem dia que não.” Ele garante que até gostaria de voltar ao trabalho formal, mas não consegue. “O pessoal precisa trabalhar. Muita gente está na rua porque não consegue emprego. Se tivesse mais oportunidade, diminuía o tanto de ambulante.”
De outro canto do país, o paraibano Júnior Silva, de 43 anos, é outro retrato de quem já viveu dias melhores como ambulante. Natural de Patos (PB), ele viajava todos os anos até Campo Grande para vender redes e bandeiras durante a temporada de calor. “Antes eu fazia 15, 20 mil em três meses. Voltava pra casa e vivia o resto do ano com esse dinheiro”, contou.
Júnior já fez esse percurso três vezes, comprava a mercadoria no Nordeste, trazia de ônibus e voltava para casa quando o dinheiro rendia. Mas agora diz que o esforço não vale mais. “Não sei se é porque aumentou o número de ambulantes, se é a crise, mas agora não dá mais pra viver disso. Tem semana que não vendo nada. Acho que da próxima vez eu nem volto.”

No Parque do Sóter, o som do motor de uma Kombi branca anuncia a presença de um personagem conhecido pelos frequentadores: o Gaúcho, de 56 anos. Ele prefere ser chamado apenas pelo apelido e há três anos vende garapa e água de coco na região.
Mesmo querendo se regularizar, alega que esbarra na burocracia. Como ocupa espaço público sem autorização, já tentou conseguir energia elétrica, mas diz que os pedidos nunca avançam.
“Queria colocar um relógio pra pagar certinho, mas não deixam. Em outros lugares, em área pública, tem energia”, reclama.
Sem banheiro, sombra ou estrutura, ele trabalha todos os dias até o fim da tarde, ganhando o suficiente apenas para cobrir o básico. “Trabalhei 30 anos em obra. Hoje vivo disso aqui. Ralo sábado, domingo, feriado, até nove da noite e ganho pouco”, resume.
A reportagem questionou a Prefeitura sobre levantamento atualizado do número de ambulantes na cidade e sobre a política municipal para lidar com o crescimento desse tipo de comércio, mas desde ontem aguarda resposta.

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