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Arquitetura

Ana perdeu todos vizinhos ao longo de 60 anos, mas resiste junto ao portão azul

Numa rua movimentada, poucos percebem a beleza da casa, que ressoa das vigas de madeira com seis décadas de história

Kimberly Teodoro | 06/10/2018 08:06
Ana e a varanda da casa de onde observou a cidade crescer. (Foto Kimberly Teodoro)
Ana e a varanda da casa de onde observou a cidade crescer. (Foto Kimberly Teodoro)

Nascida em Cuiabá, Ana Ferreira Leite veio para Campo Grande aos 27 anos na companhia da amiga Teresa, que tinha família aqui. O que era para ser uma visita rápida se transformou em 60 anos de história na mesma casa, o amor de uma vida inteira, 5 filhos, 13 netos e 1 bisneto. 

Saudade mesmo ela só teve da família, nunca de Cuiabá, cidade que trocou pela “vila na fazenda” que era Campo Grande naquela época. O motivo? Racionalmente ela não sabe explicar, mas nem cogita sair da casa de madeira, de onde viu tantas mudanças acontecerem ao redor.

Na lateral da casa os visitantes entram por um portãozinho azul que contrasta com as flores. (Foto: Thailla Torres)
Na lateral da casa os visitantes entram por um portãozinho azul que contrasta com as flores. (Foto: Thailla Torres)
Na lateral da casa um corredor de motos leva até a oficina do filho mais novo de Ana (Foto: Thailla Torres)
Na lateral da casa um corredor de motos leva até a oficina do filho mais novo de Ana (Foto: Thailla Torres)

“Cheguei no dia 18 de dezembro de 1958, era fim de tarde e amei o lugar no mesmo instante. Quando minha amiga decidiu voltar para Cuiabá eu disse que não voltaria com ela”, conta Ana, que diz ter sido sempre muito intensa. "A maioria das decisões que tomei na vida foram baseadas no coração, menos o casamento", conta.

Ana lembra da primeira vez que viu José Maria Vidal, marido com quem dividiu os melhores e os mais difíceis momentos da vida, ele era filho de uma vizinha da “Dona Cota”, a senhora que a abrigou durante a mudança de cidade. Naquele tempo, as coisas eram diferentes, e os vizinhos eram amigos, quase família e conheciam bem a história de cada morador do bairro, José foi uma recomendação das mulheres mais velhas que o viram crescer e aconselharam Ana a se relacionar com o rapaz.

“Meu maior medo era ter um homem preguiçoso em casa, que não gostasse de trabalhar e não ajudasse com os filhos, mas meu esposo sempre foi um homem trabalhador, fez de tudo pela gente, é um bom pai e um bom avô”, justifica, mesmo sem ter tido um “amor à primeira vista”.

Dona Ana cuida com carinho de cada detalhe da casa construída por ela e pelo marido, que é uma das mais antigas do bairro(Foto: Kimberly Teodoro)
Dona Ana cuida com carinho de cada detalhe da casa construída por ela e pelo marido, que é uma das mais antigas do bairro(Foto: Kimberly Teodoro)

O casal teve um mês de namoro antes do casamento em 1960, foram 9 anos até a construção da casa de madeira, com um charmoso portãozinho azul que contrasta com as plantas, muros e paredes cor-de-rosa na lateral. Passando quase despercebida aos olhos, hoje é uma das mais antigas no bairro Jardim Paulista e a única na quadra que ainda é residencial.

Para quem olhar bem, provavelmente é a pintura com os dizeres "piranha" no muro que vai se destacar, apelido do filho mais novo de Ana, que hoje tem uma oficina de motos nos fundos da casa. Em seguida, os olhos caminham para a fileira de motocicletas estacionadas no corredor, ao lado do portão azul. Com o tempo, grande parte dos vizinhos morreram ou se mudaram dali, ela ainda se lembra dos tempos mais animados e que hoje se resumem a visita da família e dias de sábado na igreja.

O casamento que já dura 58 anos, resistiu até mesmo a perda do filho mais velho, que morreu aos 32 anos em um acidente que já não traz mais lágrimas aos olhos da mãe. Ao falar do filho, ela é tranquilidade apenas, cheia de boas recordações. Ao contrário de muitos casais que nunca se recuperam de uma tragédia assim, Ana e José tiveram como maior apoio a força um do outro. “Não podemos nos separar nunca, somos uma família e mesmo com a dor só podemos ficar mais próximos, não o contrário”.

Ana revela dois segredos além do companheirismo para uma relação duradoura: “Muita briga e discussão”. E para acertar as coisas na hora de fazer as pazes, nunca deixar nenhuma mágoa guardada. O segundo conselho é a mulher não se casar com alguém que ela ame demais, porque “nós mulheres somos muito intensas e os homens são muito volúveis e se recuperam depois de uma noite de bebedeira com outras mulheres, eles não compartilham dos nossos sofrimentos e não entendem. Então quando você casa com alguém que te ama mais, ele faz de tudo pela sua felicidade, para que você continue na vida dele”, explica.

Cada detalhe é feito com amor, a cortina branca foi costurada por dona Ana com o tecido que ganhou da filha (Foto: Kimberly Teodoro)
Cada detalhe é feito com amor, a cortina branca foi costurada por dona Ana com o tecido que ganhou da filha (Foto: Kimberly Teodoro)
58 anos de história da família estão na estante da casa onde Ana criou os filhos (Foto: Kimberly Teodoro)
58 anos de história da família estão na estante da casa onde Ana criou os filhos (Foto: Kimberly Teodoro)

Aos 82 anos ela mantém a casa em ordem com zelo, costura as cortinas, enfeita com delicadeza cada canto e convence o marido a fazer qualquer reforma necessária, seja pintar as paredes ou trocar o piso, não importa o tamanho, tudo para preservar a personalidade do casal e da família que já foi maior. “Se eu sairia daqui? Sair pra onde? Minha vida foi aqui e não tem lugar no mundo pra onde ir que seja melhor”.

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