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Artes

Ator coleciona reclamações de amor após 4 meses ouvindo histórias na rua

Desempregado, ele decidiu criar uma peça com histórias de pessoas anônimas que passam diariamente pelas ruas de Campo Grande.

Thailla Torres | 13/08/2019 08:55
As palavras pareciam solitárias no papel, por isso, o ator decidiu abriu mão de contemplar apenas o ‘eu’ e ir às ruas para falar do ‘outro’ e de ‘nós’. (Foto: Febraro de Oliveira)
As palavras pareciam solitárias no papel, por isso, o ator decidiu abriu mão de contemplar apenas o ‘eu’ e ir às ruas para falar do ‘outro’ e de ‘nós’. (Foto: Febraro de Oliveira)

Aos 20 anos, desempregado, Febraro de Oliveira percorre as ruas de Campo Grande cantando uma canção de Heitor Villa-Lobos, chamada Melodia Sentimental, até encontrar um banco para posicionar o seu cavalete com o aviso: “Reclama o teu amor aqui”. Sentando ele fica durante quatro horas, ouve histórias e o reclamar de quem passa.

O projeto iniciou há quatro meses e virou dramaturgia nas mãos do jovem ator. “Eu tinha apenas um cofrinho e precisava entrar em cena. Agoniado com muita coisa acontecendo com o mundo dormi e acordei no outro dia decidido a escrever uma peça”, lembra, Febraro.

As palavras pareciam solitárias no papel, por isso, o ator abriu mão de contemplar apenas o ‘eu’ e ir às ruas para falar do ‘outro’ e de ‘nós’. “Peguei o único dinheiro que tinha no meu cofre e fui comprar um cavalete. Cheguei na Praça Ary Coelho e entrei em desespero, porque achei que não iria ninguém”.

No primeiro instante, as pessoas olham desconfiadas. Febraro não se importa. Sentado ele fica sem chamar ninguém, às vezes, aproveita o tempo livre para ler um livro e escutar uma música. Na primeira meia hora, ninguém aparece. Depois, chove histórias.

“Depois de um tempo é uma pessoa atrás da outra. Já no primeiro dia, haviam quatro pessoas conversando e eu nem precisava abrir a boca, já que elas estavam dialogando entre si. Eu também não estou ali para dar conselhos, mas para ouvir as histórias que só existem quando são contadas ou lembradas”.

Febraro ouviu e dançou com pessoas na rua durante performances.
Febraro ouviu e dançou com pessoas na rua durante performances.

Algumas histórias são inevitavelmente marcantes. Como a de Gabrielly, uma prostituta que narra os sonhos em uma fala potente.

“Eu... eu queria ser bailarina, sabe? Eu acho isso me dá vontade de chorar. Porque... eu já tô velha, né? Os... os meus braços não são, não são, de... de bailarina, os pés também, meu pé... ele, ele é duro, cortado, é feio. Eu... eu acho que... eu... isso pode me fazer chorar, menino. Eu queria dançar mais um pouco. Ter chance de dançar. Tem uma música que eu adoro. Eu ouvi ela algumas vezes, é... eu não... eu não vou me lembrar, é... “sabe... será que ela... é moça... será que é...” é algo assim, eu acho que é algo assim... é uma música bonita. Eu tenho medo, às vezes, sabe? De sonhar, sabe? Sonhar... é difícil. Difícil”.

Enquanto a Gabrielly falava, o ator notava, no seu corpo, algumas marcas. Depois ela contou o que era. Toda vez que ela ia para rua, o marido tatuava o corpo dela com uma faca.

Outro dia, o ator ficou sentando durante cinco horas com um senhor de idade. Ele contou sua vida inteira e dançou ‘La Vie En Rose’ em plena rua para lembrar da única vez que dançou com um grande amor da vida: outro homem. “Um amigo meu, uma vez, me assegurou, que desde da barriga da mãe, a gente já quer pertencer. E eu acho que estávamos nos pertencendo, ali. E teve um momento lindo, que dançamos La Vie En Rose, música que ele dançou com o grande amor da vida dele, em uma época muito complicada. E aí, ele me chamou pra dançar. E eu dancei. Mais ou menos assim. Um passo de cada vez, sem tropeçar e nós simplesmente existimos. E é por causa desse homem, que não conseguiu viver o grande amor vida dele, que eu posso viver o meu”, descreve o ator.

Febraro durante "Reclama teu amor aqui".
Febraro durante "Reclama teu amor aqui".

No final de uma conversa, outra passante da praça quis pagar, emocionada, ao saber que sua história ganharia os palcos. “Tirou R$ 2,00 da bolsa quando falei que ia construir uma peça e perguntou ‘eu vou estar no teatro?’. Respondi que sim e aceitei o dinheiro após ela insistir. Mas aquilo me emocionou muito e eu nunca vou gastar esses dois reais, o dinheiro está guardado”.

Ferformance “Reclame o teu amor aqui” nasceu outras duas etapas de captação de histórias, uma delas com um café da manhã preparado por Febraro em plena rua. “Eu levo uma mesa, duas cadeiras, bolo e café. Ao contrário de escutar, eu falo. Conto quatro histórias, discursos que também são levados para a peça”.

A terceira pessoa fala de “nós”, onde o ator escreve uma carta. “A pessoa chega e me fala um endereço, e eu envio para ela uma carta depois de um mês”, explica.

As três performances realizadas pela cidade renderam uma dramaturgia que está pronta. Febraro interpreta cinco personagens em 14 cenas. A peça também possuí uma linha que conecta com Aline, melhor amiga que se matou há dois anos. “Ela carrega o fio da meada, aliás, essa peça é para ela e todas as histórias do mundo”.

E a lógica de iniciar uma peça indo colher histórias na rua é porque Febraro queria ter a noção “da importância do silêncio, da importância de escutar o outro sem interromper”.

O ator foi à praça, mas também sentou em lugares abandonados. Ouviu pessoas em situação de rua, dependentes químicos, que estavam indo embora, que estavam chegando, que estavam sofrendo. “Eu tenho 20 anos, sou casado com um homem, moro no centro da cidade e sei como o mundo gira diferente pra mim. Durmo com medo de deixar a porta destrancada e já sofremos ameaças. Então, ir às ruas, é uma anarquia da felicidade. É conseguir respirar e notar que nós sobreviveremos”.

Sem data de estreia, a peça tem como finalização as manchetes de jornais de todas as pessoas que foram mortas em 2017, 2018 e 2019.De forma subjetiva, a peça acaba dizendo o óbvio: o que faremos agora? Nós sobreviveremos?

“Em tempos de ódio são as perguntas que mais ecoam em minha cabeça e também uma síntese de tudo que me falaram nas três performances. Mas nós sobreviveremos, está difícil, não há como negar, mas é com muito carinho que a gente vai mudar o mundo com a arte”, conclui.

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