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Comportamento

Angelita deixou as flores cobrirem parede inacabada, para lembrar de Laudomiro

Os dois cresceram e envelheceram juntos e depois que ele partiu, agora a esperança é de reencontrar os irmãos que ficaram em Pernambuco, único vínculo com o passado.

Kimberly Teodoro | 09/04/2019 08:46
Laudemiro se foi há 20 anos, mas Angelita mantém a parede "inacabada", deixada por ele na construção da casa (Foto: Paulo Francis)
Laudemiro se foi há 20 anos, mas Angelita mantém a parede "inacabada", deixada por ele na construção da casa (Foto: Paulo Francis)

Muito antes de ver a casa, os olhos recaem sobre os ramos de “sete-léguas” que se espalham pela entrada e prendem a atenção de quem se aproxima desde o início da rua. A trepadeira tem caule rústico e folhagem vasta, colorida pelos delicados tons de rosa das flores, com pétalas de perfume suave, assim como Angelita, mulher que teve a força moldada pela vida dura no sertão brasileiro e chegou a Mato Grosso do Sul há mais de meio século, fugindo da seca e da fome do interior de Pernambuco.

Filha de Antônio Leite da Silva e Luzia Maria da Conceição, nascida no município de Pesqueira, perto de Olinda, Angelita Luzia da Conceição Libório, hoje com 86 anos, só se arrepende de ter deixado a família, que ainda espera reencontrar. Sem notícias desde que chegou a Campo Grande, ela diz ter cinco irmãos: Maria Luzia, Sebastiana, José, Pedro e Amaro, dos quais a única recordação é uma fotografia antiga dos dois últimos, do restante a imagem ficou apenas na cabeça. 

A decisão de se aventurar por terras desconhecidas em busca de melhor sorte não foi fácil. Casada ainda muito jovem, aos 14 anos, Angelita logo teve quatro filhos, um deles um bebê de seis meses, perdido para as doenças que assolavam a zona rural. “A situação lá era feia, a gente saia em busca de um dia inteiro de trabalho em troca de um prato de comida e não achava nada. Passamos muita fome com as crianças pequenas, até que meu marido resolveu vir embora”, conta.

Na parede os irmãos Pedro e Amaro, o único retrato da família que ficou para trás (Foto: Paulo Francis)
Na parede os irmãos Pedro e Amaro, o único retrato da família que ficou para trás (Foto: Paulo Francis)
Angelita deixou o nordesde há mais de meio século, mas não perde a esperança de rever os irmãos (Foto: Paulo Francis)
Angelita deixou o nordesde há mais de meio século, mas não perde a esperança de rever os irmãos (Foto: Paulo Francis)

Ainda assim, na memória ficaram mais que os momentos de dificuldade. Foi em Pesqueira que Angelita conheceu o companheiro de uma vida inteira, Laudemiro Libório, que partiu há 20 anos quando o corpo não aguentou mais a hemodiálise, deixando a saudade espalhada pela casa erguida por ele no bairro Rita Vieira, em uma época em que pela região só “haviam fazendas” e a escola municipal, há poucos passos do terreno da família “ainda era um cemitério”.

O casamento veio de um amor nascido ainda no berço, Laudemiro era apenas 10 meses mais velho que Angelita. “Quando a minha mãe e o meu pai, que eram muito novos, iam para as festas dançar, a gente dividia a cama com as outras crianças. Quando o baile acabava, as mulheres cada uma pegava se filho e ia para casa, já nessa época o pai dele via a gente e já dizia que seríamos um casal”, relembra. Daí em diante os dois cresceram juntos, um sempre perto do outro, até o interesse da infância desabrochar no primeiro amor. O namoro “escondido” dos pais durou três meses, por medo que Antônio não aceitasse, mas depois do pedido oficial a cerimônia foi marcada na Paróquia Nossa Senhora das Montanhas, para o dia 28 de dezembro, aniversário de 14 anos de Angelita. “A data mais bonita que eu achei”.

Costurado à mão, o vestido de noiva foi feito por ela e levou três dias para ficar pronto, em um tempo em que “as coisas eram mais simples”, nem por isso feitas com menos capricho. Costureira das boas, Angelita conta que já chegou a fazer três vestidos por dia, “para passar o tempo” e mais tarde passou também a ser a responsável pelas roupas da família.

Trouxe também da infância o amor pelas plantas e o “dedo verde” que parece vir de família. Hoje o jardim que começa na trepadeira que cobre a entrada, se estende o quintal e tem incontáveis espécies diferentes. Entre as favoritas, a “dama da noite”, com flor branca que só se abrem a noite e exigem paciência de quem quer apreciar sua beleza. “Se vier pela manhã, as pétalas já vão estar murchas, mas quando ela desabrocha, o cheiro que ela deixa no ar é maravilhoso, não parece com nenhuma outra planta”.

A mão direita carregou a aliança dela ao lado da do marido nos últimos 20 anos (Foto: Paulo Francis)
A mão direita carregou a aliança dela ao lado da do marido nos últimos 20 anos (Foto: Paulo Francis)

Quando Angelita e Laudemiro chegaram ao então sul de Mato Grosso, foram viver em Dourados, onde por muitos anos ele trabalhou na lavoura, mas nem por isso a vida foi mais fácil. Intoxicado pela aplicação de agrotóxicos, ele passou os últimos 17 anos da vida preso à máquina de hemodiálise, motivo que trouxe a família para Campo Grande, único lugar capaz de oferecer o tratamento. O ano exato de todas essas mudanças, Angelita não se lembra. “Eu era jovem e só sei que foi há muito tempo”.

A primeira casa da família por aqui foi alugada, no bairro Santa Eugênia, enquanto a casa no Rita Vieira, onde vive há 40 anos, ainda não havia sido construída. Já fazendo tratamento renal, Laudemiro não podia carregar peso, o que fez com que ele erguesse as paredes aos poucos com a ajuda de um cunhado.

Hoje os filhos ajudaram a aumentar casa, que permanece com uma única parede externa “inacabada”, com os tijolinhos de barro emoldurados pelo branco do reboco que cobre o restante das paredes, mas ainda a mostra dando boas vindas a quem quer que passe pelo portão. O toque diferente é a recordação mais forte da presença do marido, que antes de morrer não teve tempo de dar o devido acabamento à obra, mas nem por isso deixou de ter os esforços reconhecidos pela esposa, que não permite que ninguém mexa ali. “Quando saímos de Pernambuco, meu pai fez o Laudemiro prometer que cuidaria bem de mim, foi isso que ele fez a vida inteira”, explica.

Os ramos de "sete-léguas" cobrem a entrada da casa como um prenúncio da mulher que ali vive (Foto: Paulo Francis)
Os ramos de "sete-léguas" cobrem a entrada da casa como um prenúncio da mulher que ali vive (Foto: Paulo Francis)

Juntos, o casal teve 13 filhos que chegaram a vida adulta e outros dois que já se foram, 23 netos e 25 bisnetos que mantém a casa cheia aos fins de semana e comemorações de família. Laudemiro não chegou a conhecer todos, o coração falhou quando o tratamento passou a pesar de mais para o corpo já debilitado. Mesmo com filhos e um genro compatíveis, ele nunca quis tentar o transplante. “Ele dizia que quem tem dois rins, no final tem um só e quem tem um, não tem nenhum e essa vida ele não queria para ninguém, muito menos para a família dele. Os remédios, que quem é transplantado precisa, também são muito caros e viviam em falta nos postos e na Santa Casa. Ele tinha medo de sair da máquina, mas continuar dependente para o resto da vida”.

Aconchegante, o lar de Angelita é um pedacinho do Nordeste, aqui em Mato Grosso do Sul. Com móveis antigos e piso vermelho que exige ser mantido com cera, como antigamente, exatamente do tipo que não se faz mais. Mulher de fé católica, a parede de Laudemiro ganhou uma a capela construída pelo filho, onde ela mantém todas as imagens de santo da casa, muito bem arrumados e cercados por flores e uma manta feita de fuxicos. Enfeites simples, mas de encher os olhos.

Quando questionada sobre as intenções de voltar para Pernambuco, Angelita diz ter deixado a terra natal há muito tempo. “Hoje dificilmente alguém iria me conhecer”. Ela sabe que não há como se despedir dos pais, mas ainda espera ter notícias da família que ficou no nordeste. A filha, Rose Libório, já fez buscas na internet pelo nome e sobrenome da mãe e dos tios, mas a lista é grande e difícil de peneirar.

Por isso, como último recurso as duas decidiram contar a história de Angelita aqui no Lado B, na tentativa de que um veículo de comunicação online consiga alcançar as fronteiras que televisão local não conseguiu e, com o reconhecimento, algum dia seja possível trazer paz ao coração cheio de saudade. Quem tiver qualquer informação, pode entrar em contato com a nossa equipe pelo e-mail: ladob@news.com.br ou pelas nossas redes sociais.

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