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Comportamento

Após morte trágica, neto descobre em pesquisa e viagens quem era a avó Laura

Fabricio Moser tinha nove meses quando sua avó materna foi assassinada e, para resgatar sua trajetória, criou uma peça de teatro

Eduardo Fregatto | 06/06/2017 07:54
Ator segura moldura de madeira que pertenceu à avó, um dos únicos objetos de Laura que conseguiu resgatar. (Foto: Ricardo Martins)
Ator segura moldura de madeira que pertenceu à avó, um dos únicos objetos de Laura que conseguiu resgatar. (Foto: Ricardo Martins)

O ator e diretor Fabrício Moser nunca conheceu sua avó materna, Laura. Quando ela morreu, ele tinha apenas nove meses de vida. O douradense de 35 anos cresceu curioso sobre a avó, sobre sua história, costumes, gostos pessoais e personalidade, mas sempre recebeu o silêncio e o ar de receio dos familiares como resposta. Laura foi embora de maneira trágica, aos 55 anos, assassinada por um ex-namorado.

“Ela foi uma personagem apagada dentro de casa, por conta desse trauma familiar”, explica. Após anos de dúvidas e inquietação, Fabrício decidiu resgatar toda a trajetória da avó que não conheceu. Criou então um espetáculo autobiográfico. “Laura” fala da morte trágica e, o mais importante, da vida.

Foram meses de pesquisa, viagens e entrevistas. Nesta jornada, o ator descobriu que tem muito mais em comum com a avó do que imaginava. “Ela gostava de dançar e tinha um trabalho artesanal, em que criava coroas de cemitério. É de onde eu posso ter herdado minha influência artística”, sugere.

A mãe de Fabricio, Vera, sua irmã mais velha, e sua avô, Laura, o segurando no colo. (Foto: Acervo Pessoal)
A mãe de Fabricio, Vera, sua irmã mais velha, e sua avô, Laura, o segurando no colo. (Foto: Acervo Pessoal)
A avô Laura em mais um registro com seus netos. (Foto: Acervo Pessoal)
A avô Laura em mais um registro com seus netos. (Foto: Acervo Pessoal)

Laura era cartomante, gostava de dançar, ver novela e jogar conversa fora e, após um divórcio, reencontrou o prazer pela vida em uma clube de dança da terceira idade. Ela foi morta em 1982, na rua, em plena luz do dia, em Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul. O assassino se suicidou em seguida. Foram três tiros que mudariam a vida de toda a família, inclusive a de Fabricio.

Para a peça, ele aprendeu sobre as cartas de tarô (o ator abre as cartas para a plateia durante a montagem), além de dançar, como a avó amava fazer. E ele também interpreta Laura. “Alguém precisando de um chá de barata? Cura qualquer coisa! Ou um benzimento, alguém quer?”, indaga o ator durante o espetáculo, emulando alguns dos costumes da avó que descobriu por meio dos relatos de parentes.

“Eu acho que ela estaria feliz de me ver compartilhando a história dela, todos os saberes que ela carregava”, analisa. O processo foi doloroso no início, ele confessa, mas o espetáculo está ajudando toda a família a lidar com a tragédia. Um dos filho de Laura, tio de Fabricio, agradeceu o sobrinho pela iniciativa de criar o projeto, pois até então fazia 33 anos que ele não falava da própria mãe.

Fabricio abrindo as cartas de tarô, assim como sua avó fazia quando viva. (Foto: Acervo pessoal)
Fabricio abrindo as cartas de tarô, assim como sua avó fazia quando viva. (Foto: Acervo pessoal)

“Laura” foi apresentada no último final de semana, em Campo Grande, no Teatral Grupo de Risco, e emocionou o público. Em certo momento, Fabricio pede que a plateia compartilhe suas próprias perdas trágicas. É quando muitos criam coragem para falar, alguns pela primeira vez, de um ente querido que se foi. “Meu pai morreu assassinado durante o trabalho”, contou uma das pessoas presentes na plateia. “Eu só fui chorar anos depois”, completou.

“A ideia é justamente enconrajar as pessoas a contarem sobre suas tragédias, e inverter a questão trágica da coisa. Muitas tragédias são silenciadas dentro das próprias famílias”, diz Fabricio. “Laura” já passou pelo Rio de Janeiro, onde o ator reside atualmente, São Paulo, Belo Horizonte e será apresentada na Espanha e Portugal em breve. Em setembro, o espetáculo chega a Dourados, cidade natal de Fabricio.

Homenagem - Em 2014, convencido de que faria o espetáculo, Fabricio conversou com sua mãe, Vera - ou Verinha, como era conhecida -, para pedir permissão de contar a história da família. A mãe concordou, e Fabricio tinha planos de até coloca-la em cena, com ele. Infelizmente, ela não chegou a ver a estreia da montagem. Apenas 21 dias depois da conversa, a mãe e o pai de Fabricio faleceram em um acidente de carro.

Esta nova tragédia também influenciou no trabalho. Agora, Verinha está presente no palco de outra maneira, por meio de um desenho de seu rosto, posto em destaque no cenário.

A peça em sua apresentação em Campo Grande, no último domingo (4), no Teatral Grupo de Risco. (Foto: Leonardo de Castro)
A peça em sua apresentação em Campo Grande, no último domingo (4), no Teatral Grupo de Risco. (Foto: Leonardo de Castro)

Machismo – Laura morreu por conta do machismo de seu desafeto amoroso, que a enxergava como um objetvo, uma posse. “Ele dizia que ela não seria de mais nenhum homem. Tenho relatos de seus familiares dizendo que tentavam tirar essa ideia da cabeça dele [de que Laura era sua propriedade], mas ele insistia que iria mata-la”, relata Fabricio.

Para o ator, o feminícidio carrega um tabu ainda maior na sociedade, o que deixa a tragédia mais difícil de ser abordada entre a família. “A peça conta uma coisa que se passou há 30 anos e ainda é muito atual”, reflete.

A Lei do Feminicídio, inclusive, entrou em vigor há apenas dois anos, em 2015, e é considerada um avanço importante no combate à violência contra a mulher. Com a norma, a morte de uma mulher é considerada homicídio qualificado quando a razão do crime é o gênero da vítima ou questões referentes, como violência doméstica e familiar, menosprezo à condição de mulher ou discriminação à condição de mulher.

A peça conta que com recursos audiovisuais, como vídeos de amigos e parentes entrevistados por Fabricio. (Foto: Ricardo Martins)
A peça conta que com recursos audiovisuais, como vídeos de amigos e parentes entrevistados por Fabricio. (Foto: Ricardo Martins)
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