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Comportamento

Do avô que perdeu três Marias, ficou a delicadeza das palavras como lembrança

Thailla Torres | 02/04/2018 08:23
Julio, um dos netos de Paolo Garabini, um homem que era dos números, mas também das letras. (Foto: Daniele Ribeiro)
Julio, um dos netos de Paolo Garabini, um homem que era dos números, mas também das letras. (Foto: Daniele Ribeiro)

Se vivo estivesse, Paolo Garabini veria o dom que tinha com as palavras virar orgulho em família. O italiano matemático, a quem cabia bem os números, era também um homem das letras. Imigrante guerreiro, que chegou as terras brasileiras em busca de oportunidades, trabalhou firme, e se apegou às poesias como alento depois de ter perdido três esposas na vida, suas Marias. 

A série O que ficou de quem partiu  de hoje, surgiu das palavras de um dos netos, o economista Júlio Cézar Araújo Garabini, de 65 anos, que guarda com carinho cada palavra escrita pelo avô. 

O livro de poesias que veio na bagagem tornou-se alívio à saudade sentida. A curiosidade pela escrita veio na juventude, quando Júlio teve a sorte de herdar alguns dos livros do pai. Anos depois, veio uma agenda de bolso, do avô, pequena e recheada com seus dizeres emocionantes. "Todo mundo que é neto de imigrante quer saber sua origem. Por isso, eu fiz questão de ficar com essas poesias. Tudo que ele deixou é uma história muito rica", descreve.

Uma das páginas, com textos que narravam dores e alegrias de Paolo.
Uma das páginas, com textos que narravam dores e alegrias de Paolo.
Paolo Garabini, o italiano poeta, matemático e aventureiro.
Paolo Garabini, o italiano poeta, matemático e aventureiro.

Nascido em 19 de março de 1868, em Florença, na Itália, Paolo teve uma trajetória de luta. "Aos 7 anos entrou na escola e aos 15 saiu de lá diplomado. Dias depois, foi sozinho de Florença para Buenos Aires, na Argentina, onde seu pai o esperava com um irmão, para trabalhar".

Na agenda, Paolo anotava, em detalhes, cada fase da vida. Entre as andanças pelo mundo, os papéis eram preenchidos com seus gostos, as contas matemáticas, números misteriosos e até receita de sabão.

Para o neto, ele poderia até virar personagem de filme. Chegou ao Brasil sozinho, em maio de 1891, à época, em busca de oportunidades de trabalho. Viveu alegrias, mas também uma das maiores tristezas da vida. Viu partir três mulheres, esposas, amigas e companheiras que a ele deixou saudades que foram transformadas em poesias. Uma delas, ainda está nos livros, dedicada à Maria Thereza Garabini, sua última fiel companheira, com quem teve 6 filhos e deu título aos  versos de "Morta".


"Cansado e triste de viver, sofrendo da morte ingrata invoco. Dos ares à solidão, que quebrando irados, do sino torre, o sino soa o som da agonia, estoura, reage, vibra e morre. Morta, meu Deus que tristeza, já nao tenho esperança... Adeus mulher que amei perdidamente, descanse nesse túmulo tirano, dos meigos sonhos já fiquei descrente. Amor, delírio, engasgo, engano no peito meu..."

Escrever algo novo, parecia ser o combustível que guiava os passos de seu Paolo, após tanto sofrimento. Das palavras também vinha alento à saudade que sentia dos filhos, que cresceram e voaram para longe. Quando partiram de Minas Gerais para Campo Grande, o avô no seu talento e criatividade, escreveu uma carta numa "língua caipira", como referência à cidade, com jeito interiorano da época.

"Meus fios, tô burrecido, tá longe daqui quem quer bem, inté tô magrecido e num é farta de cumê. Trabaio cun muita vontade pra disfarça um instante, mas logo vem a sôdade dos fios que tão distantes..."

Por vezes, nas poesias, a dor parecia falar mais alto, principalmente ao voltar nas lembranças de quem se foi tão cedo e levou de Paolo todo amor do mundo. 

Uma de suas poesias para a última Maria que partiu.
Uma de suas poesias para a última Maria que partiu.

Paolo passou por cidades de São Paulo e Minas Gerais até chegar a Mato Grosso do Sul, em 1937. Morou em muitas fazendas, deu aulas de matemática enquanto também escrevia. Era um homem dedicado à família, até seus últimos suspiros, antes de uma morte estúpida, atropelado em uma rodovia próximo a Sidrolândia quando desceu de um ônibus. "Foi o que as pessoas da época contaram, ele já tinha mais de 90 anos, vestiu um terno e ia visitar um amigo de sobrenome Nantes. Foi assim que partiu", narra Júlio.

O neto tinha apenas 5 anos de idade quando Paolo se foi. Apesar de pouco tempo, Júlio leva na memória a imagem de um homem com bondade nos olhos e um amor na fala. A admiração transborda toda vez que, carinhosamente, folheia os cadernos antigos, amarelados, que resistem ao tempo. "Vovô tinha muita paciência, era talentoso e não só com as palavras. Lembro que ele fazia trabalhos com madeira, os carrinhos de bebê eram todos feitos por ele".

Se a vida tivesse deixado Paolo por mais tempo, Júlio não tem dúvidas de que o caminho teria sido ainda melhor ao seu lado. Hoje, o que fica são as boas lembranças e a poesia, que durante todos esses anos, deu a chance de ter o avô por perto através das palavras.

Apegado à história, o neto não encara a morte como tristeza, mas admite a saudade e a vontade que ficou de aprender ainda mais com o italiano que deixou grandes marcas. "Nunca me esqueço dele chegando de terno, chapéu Panamá e muito calmo. Meu avô tinha uma paciência muito grande e uma vontade maior de ensinar. Sei que se tivesse tido a oportunidade de tê-lo mais tempo, aprenderia muito com ele".

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* Matéria editada às 17h38 para acréscimo de fotografia.

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