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Comportamento

Eugênia quase não via negras na universidade e foi atrás do porquê

Após anos sendo uma das poucas, pesquisadora decidiu investigar quem conseguiu chegar às universidades

Por Clayton Neves | 22/11/2025 07:35
Eugênia quase não via negras na universidade e foi atrás do porquê
Eugênia é mestre, doutora e professora da UFMS. (Foto: Arquivo Pessoal)

A experiência de ser, por décadas, uma das poucas mulheres negras nos corredores da universidade nunca saiu da memória de Eugênia Portela de Siqueira Marques. Professora, pesquisadora e referência em políticas afirmativas, ela viu na própria trajetória o impulso para investigar quem são e como vivem as mulheres negras que hoje chegam à graduação em Mato Grosso do Sul.

RESUMO

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A professora e pesquisadora Eugênia Portela de Siqueira Marques lidera estudo sobre a presença de mulheres negras nas universidades federais de Mato Grosso do Sul. A pesquisa, iniciada em 2022 com apoio da Fundect, revela avanços significativos após a implementação das cotas em 2012, com destaque para a entrada dessas estudantes em cursos tradicionalmente dominados por brancos. O estudo identifica desafios materiais e simbólicos enfrentados pelas universitárias negras, como insuficiência de bolsas e racismo estrutural. O perfil predominante são jovens de 17 a 24 anos, oriundas de escolas públicas e periferias, frequentemente sendo as primeiras de suas famílias a acessar o ensino superior, representando uma importante mudança geracional.

A pesquisa desenvolvida por ela nasceu em 2022, junto com um edital da Fundect (Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul), voltado exclusivamente para mulheres na ciência. Eugênia propôs investigar a presença de estudantes negras nas universidades federais do Estado.

Ela conquistou financiamento, reuniu colegas da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e, em 2023, colocou o projeto de pé. Do edital, veio a garantia de recursos e a possibilidade de publicar o livro 'Mulheres Negras na Educação Superior - Corpos, Fazeres e Saberes Insurgentes', com as descobertas, reunindo pesquisadoras negras e aliadas brancas.

Mas, por trás da proposta acadêmica, havia algo mais íntimo, a necessidade de entender os caminhos que novas gerações começam a trilhar, caminhos estes que ela própria não teve oportunidade de viver.

Eugênia quase não via negras na universidade e foi atrás do porquê
Professora é autora do livro 'Mulheres Negras na Educação Superior'. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao mergulhar nos dados, Eugênia encontrou tanto avanços quanto obstáculos antigos. A política de cotas de 2012 ampliou o acesso, mas, segundo ela, as instituições públicas ainda falham em organizar e disponibilizar informações de forma consistente. Chegar aos dados exigiu driblar burocracias que, por vezes, dizem mais sobre o sistema do que as planilhas em si.

Mesmo assim, algo chamou sua atenção. Mulheres negras ocupando, pela primeira vez, cursos que historicamente as excluíam. “Antes, a presença era majoritária nas áreas de humanas; agora elas chegam também nas engenharias, na química, nas chamadas ‘áreas duras’”, conta. O movimento, embora recente, já aponta mudança geracional.

Mas acessar não é o mesmo que permanecer. No estudo, surgiram duas dimensões cruciais, a permanência material e a simbólica.

A primeira esbarra na falta de estrutura, como bolsas insuficientes, programas de assistência que não cobrem o básico e restaurantes universitários que nem sempre dão conta do fluxo de alunos.

A segunda, mais sutil e profunda, aponta para o racismo cotidiano, para a solidão de entrar em um espaço que ainda é majoritariamente branco e para a sensação de não-pertencimento. “Não é só passar no vestibular, é enfrentar uma cultura universitária que não foi construída para elas”, revela.

Mesmo assim, Eugênia observa que o acesso e a permanência aumentam, e isso transforma trajetórias, famílias e futuros.

O perfil comum é de mulheres entre 17 e 24 anos, vindas da escola pública, de bairros periféricos e de famílias da classe trabalhadora. Muitas são as primeiras de suas casas a chegar ao ensino superior. “A universidade não garante emprego, mas abre portas. Sem ela, é muito mais difícil”, explica a professora.

Eugênia quase não via negras na universidade e foi atrás do porquê
Eugênia é formada em letras, pedagogia e direito. (Foto: Arquivo Pessoal)

O impacto social desse movimento, segundo ela, rompe ciclos e devolve às famílias um orgulho que, por muito tempo, lhes foi negado.

Quando fala sobre si mesma, Eugênia retorna aos anos 1980 e 1990, décadas em que entrar em uma universidade pública era quase impossível para quem vinha da escola pública.

Caçula de sete irmãos, ela conta que só conseguiu estudar porque teve apoio da mãe, alfabetizada até o quarto ano, e da irmã mais velha, que ajudou a sustentar os mais novos. Fez magistério, começou a dar aula cedo e pagou, com o próprio salário, as graduações de Letras, Pedagogia e Direito.

Antes mesmo de entrar na academia, ela já frequentava o movimento negro e, segundo a professora, essa experiência moldou seu olhar para o mundo e para a educação. “O racismo atravessa a vida inteira. Ninguém fica livre disso”, diz.

Quando se tornou professora universitária, já como doutora, percebeu que pouca coisa havia mudado desde sua juventude. Nas salas de Direito onde lecionava, quase não havia estudantes negros. Os professores, então, menos ainda. Foi ali que o tema das ações afirmativas se tornou definitivo em sua trajetória acadêmica.

Desde então, ela não parou. Pesquisa sobre o Prouni (Programa Universidade para Todos), cotas nas universidades públicas, ampliação das políticas para pós-graduação. Hoje, coordena projetos nacionais e acompanha alunos negros e indígenas.

“Eu sempre fui uma das únicas. Desde 1985. Em Letras, Pedagogia, Direito. Depois, nos concursos das federais. Na UFGD, éramos pouquíssimos. Na UFMS, se tiver dez docentes negros, é muito. Então, ver que, por meio de políticas públicas, essas meninas entram e permanecem, isso emociona. E dá força para continuar”, avalia.

Para Eugênia, cada estudante negra que chega à universidade carrega não apenas seu próprio futuro, mas o de gerações inteiras. “Quando olho para trás, vejo minha avó, minha mãe, meus irmãos, todas as profissões de baixa remuneração. Hoje, essas jovens mudam histórias inteiras”, finaliza.

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