ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  26    CAMPO GRANDE 32º

Comportamento

Foto em posto de saúde revela menina que amava ser médica, mas morreu aos 35

Marly tinha vontade de cuidar do mundo, ou pelo menos, quem tivesse ao seu alcance. Mas ela foi embora cedo demais.

Thailla Torres | 09/03/2018 07:51
Retratos ficam na entrada do posto de saúde da Vila Margarida. (Foto: Arquivo Pessoal)
Retratos ficam na entrada do posto de saúde da Vila Margarida. (Foto: Arquivo Pessoal)

No posto de saúde do Jardim Marabá, em Campo Grande, a fotografia de uma mulher com olhar forte e bonito gera curiosidade. No retrato, está Marly Anna Tatton Berg Gonçalves Pereira, que deu nome à unidade básica de saúde fundada em 2004 no bairro. O Lado B foi em busca da  história e descobriu a vontade que Marly tinha de cuidar do mundo, ou pelo menos, de quem tivesse ao seu alcance. Mas a vida a levou embora cedo demais, aos 35 anos

Marly nasceu em Porto Murtinho, em 1950, e partiu em outubro de 1986.  Era a segunda filha de uma costureira que está viva até hoje, com 95 anos, e é cuidada pela família que sabe da luta dela e do marido, que era torneiro mecânico, para verem os filhos bem encaminhados. Assim Marly formou-se em Medicina.

Hoje sua história é contada pela filha, Patrícia Berg Leal, de 37 anos, que teve a chance de viver na companhia da mãe até os 6 anos de idade, sendo o último, marcado por internações e a luta para sobreviver a um aneurisma.

Marly e Patrícia, mãe e filha que estavam sempre sorrindo. (Foto: Arquivo Pessoal)
Marly e Patrícia, mãe e filha que estavam sempre sorrindo. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Minha avó conta que o sonho dela era ser médica enquanto brincava com as bonecas", lembra. O tempo passou mas o sorriso da mãe parece ter renascido em Patrícia, que lembra muito Marly pelo olhar, o mesmo da foto, que fala por si na porta de um posto.

"A menina da primeira foto sou eu. A outra é quando ela já estava doente, não queria de jeito nenhum fazer aquele fotografia".

Patrícia conta que a mãe formou-se em Medicina na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e exerceu a profissão com amor. Sempre dedicada, saiu do hospital para se aprofundar na área sanitária de saúde pública e atuava fortemente nas campanhas de vacinação. Era admirada pela voz mansa e o jeito calmo em lidar com os pacientes.

Era assim também dentro de casa, onde às vezes a mãe até ensinava Patrícia a cantar, diálogos que foram gravados em fita cassete, que até hoje estão guardadas com a filha, mas já são inaudíveis. "Em uma das fitas estávamos conversando, lembro que eu ia muito no trabalho com ela. Tinha também ela me ensinando a cantar e minha avó falando em guarani, onde a gente entendia".

As fitas eram gravadas pelo avô de Patrícia. "Ele gostava demais, assim como da fotografia, era o jeito que ele tinha de registrar os bons momentos. Até esses tempos consegui remasterizar e colocar algumas fitas no pendrive. Mas é difícil de ouvir. Além do mais, é bom, mas dói".

Patrícia, com 5 anos, no colo de Marly.
Patrícia, com 5 anos, no colo de Marly.
Gustavo o filho caçula, o pai Ronaldo e Patrícia, com o sorriso que lembra a mãe.
Gustavo o filho caçula, o pai Ronaldo e Patrícia, com o sorriso que lembra a mãe.

Marly também está nas lembranças da amiga de infância, a médica Beatriz Dobashi, que nunca esqueceu a luta dela e da amiga para conseguirem prestar o vestibular à época. "Eu e Marly estudamos juntas desde pequeninha e entramos juntas na faculdade. Mas não foi nada fácil, tivemos que implorar por uma matrícula na escola". 

Beatriz conta que as duas deixaram o colégio de freiras, o Auxiliadora, para estudar no Colégio Estadual Campo-Grandense, onde hoje é o Maria Constança, mas não havia mais vaga. "A gente encheu o saco do diretor, conversamos muito até que um dia colocaram os papéis no balcão e fizemos nossa matrícula. Queríamos terminar o Ensino Médio para fazer Medicina".

A profissão era um sonho das duas, que compartilhavam confidências e ganharam apelido na turma pela cumplicidade. "Chamavam a gente de Cosme e Damião, porque a gente nunca se desgrudava", lembra.

Ao chegar na escola pública, Beatriz lembra que também foram motivo de riso entre os alunos. "Imagina, duas meninas que chegaram de uma escola de freiras e cheias de disciplina, na hora que o professor entrou em sala, nós levantamos em respeito e todo mundo ria. Tinha também nosso uniforme, usávamos uma saia bem feita e com um cinto largo, enquanto as outra meninas encurtavam a saia, éramos a dupla diferente da escola".

Nas recordações da amiga Beatriz Dobashi. (Foto: Beatriz Dobashi)
Nas recordações da amiga Beatriz Dobashi. (Foto: Beatriz Dobashi)
Marly, Ronaldo e Patrícia, ainda pequeninha.
Marly, Ronaldo e Patrícia, ainda pequeninha.

De amigas passaram a comadres, Beatriz foi madrinha no casamento de Marly, ainda no último ano da faculdade de Medicina. A médica casou-se com Ronaldo Neder, hoje neurocirurgião que trabalha na Santa Casa de Campo Grande ao lado da filha Patrícia, que também escolheu seguir a profissão dos pais. 

Um homem reservado que fala pouco do passado, mas lembra com carinho os anos ao lado da esposa que partiu. "Marly era uma mulher incrível e admirada. Amava a família e se dedicava ao trabalho com o mesmo sentimento", recorda.

Foi ele quem esteve ao lado dela no momento mais difícil e doloroso da família, lembra Patrícia. "Eu tinha 4 anos e meu irmão mais novo apenas 1 ano e 6 seis meses quando ela adoeceu, em 1984. Começou com dores no pescoço e no braço, e foi perdendo os movimentos".

A família buscou ajuda em São Paulo quando veio o diagnóstico de aneurisma. Ela foi operada e saiu da primeira cirurgia acordada, mas foi preciso um novo procedimento. 

Marly não resistiu após a segunda cirurgia e o que ficou na memória da filha foi a revelação do pai. "Ele me chamou para dar uma volta de carro, tinha uma caminhonete e me perguntou se queria desenhar. Fomos até uma banca comprar revista para colorir e nesse meio tempo contou que a mamãe não iria voltar.  Lembro de olhar para ele e perguntar se ela havia morrido de deixar o caixão embaixo da terra, ele afirmou que sim e aquilo ficou na cabeça, foi uma sensação muito ruim", descreve.

Anos mais tarde, a dor deu uma trégua. Patrícia cresceu ao lado da família, casou, teve filho e o pai também deu a volta por cima, com um novo amor. Enquanto Marly, deixou um legado de dedicação ao ofício, mesmo em tão pouco tempo. "Acho que, por isso, vai ser sempre lembrada", diz a filha.

Curta o Lado B no Facebook e Instagram

Aniversário em família.
Aniversário em família.
Nos siga no Google Notícias