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Comportamento

Meu bebê existiu, não importa quão breve tenha sido a sua vida

Muitas vezes invisível, a dor do luto gestacional e infantil existe e o vazio que ela deixa também

Paula Maciulevicius Brasil | 25/10/2020 08:55
Não há band-aid capaz de cobrir a ferida de perder um filho. (Ilustração: Henn Kim)
Não há band-aid capaz de cobrir a ferida de perder um filho. (Ilustração: Henn Kim)

Antes que termine o mês, outubro também é voltado à conscientização da perda gestacional e infantil. Muitas vezes invisível, essa dor existe e o vazio que ela deixa também. Meu primeiro e mais próximo contato com a perda ainda gestacional foi de uma amiga muito querida que pedi que escrevesse.

Que as palavras da Ana Maria Assis de Oliveira, a Aninha, cheguem como alento às mães que vivenciaram e vão conviver o resto da vida com a perda de um filho.


"Antes mesmo de nos percebermos mulher, ganhamos uma boneca. Somos filhas de uma geração de mulheres que foram criadas, educadas, amadas, cuidadas por mulheres. Enquanto os pais trabalhavam muito ou simplesmente eram ausentes. Assim é para muitas de nós. Fica difícil separar o que é ser mulher e o que é ser mãe. E deixamos de pensar se a vontade de ser mãe vem de dentro de nós, ou se foi construída, desde que ganhamos aquela boneca.

Sonhar, desejar algo de todo coração é o que nos mantém vivas, sobreviventes, o que dá sentido a toda caminhada. Mas, quando sonhamos com uma família, envolvendo marido e filhos biológicos, é arriscado. Não depende de nós, definitivamente. E mais. Dificilmente a história virá conforme os filmes que assistíamos na época em que ganhamos aquela velha boneca. Não existe carruagem, fada-madrinha, príncipes. Os sonhos que alimentamos desde a infância são possíveis? O que significa quando dizem: 'e viveram felizes para sempre'?

'Quando nasce a mãe, nasce a culpa'. Essa frase é repetida por muitas mulheres exaustas. Mas eu não sei quando nasce, exatamente, a culpa da mulher, nem a exaustão, até por não saber quando exatamente ela se vê mãe. Afinal, quantos anos esperam para lhe dar a primeira boneca? As mulheres solteiras que sonham com a ideia convencional de família se perguntam o que falta em seus corpos, se perguntam se terão tempo de ter filhos biológicos após encontrar o marido, se perguntam se vão encontrá-lo. Sentem-se culpadas quando, na sua idade, todas as amigas já estão comprometidas. A boneca é uma extensão da menina, como o filho é uma extensão da mulher. E essa é a ideia explorada durante toda nossa vida. Seremos felizes sem isso?

A perda gestacional em ilustração.
A perda gestacional em ilustração.

Nessa trajetória, de procura e incertezas sobre nossos sonhos tão consolidados, muitas de nós casamos. Faltando o cavalo branco, o sapato de cristal, a carruagem, o conto de fadas, mas com alguma história real de encontros e desencontros, e por uma escolha própria, ainda bem. Mas, permanece uma sensação de incompletude muitas vezes. Hoje, mais livres do que ontem, cada uma de nós lida de uma forma com essas expectativas desde a boneca. Algumas de nós, arremessamos a boneca para longe. Outras permanecem sonhando com ela.

E assim, decidimos: 'vou ser mãe'. E sentimos a natureza inteira, um universo inteiro, se formando dentro do nosso corpo. É louco, mágico, intenso, profundo, difícil de explicar. Passamos a perceber o quanto somos diferentes, o quanto é misterioso pra nós mesmas o nosso corpo e as nossas emoções. Não é um conto de fadas. É forte, é cheio de sensações boas, ruins, de todo tipo. É a vida e um mundo dentro da gente. O nosso sonho passa a ganhar forma e cores, pensamos em nomes, roupinhas, quarto, imaginamos o nosso filho ou filha, desde o primeiro sorriso até a sua formatura. Imaginamos e sonhamos tanto como nunca. Todos esperam isso de nós, e nós estamos devolvendo isso a eles. Passam a nos ver como uma casa de alguém, alguns nos julgam e outros nos mimam, e nós só pensamos em escutar alguma voz interior ou dos céus que nos diga como agir. A verdade é que não haverá voz alguma.

Quando de repente esse sonho é interrompido, a vida é interrompida dentro de nós, a morte chega estremecendo nosso corpo, nosso mundo, nossos desejos, nossos hormônios. Algumas vezes descobrimos o quanto de sangue podemos derramar, e o quanto de lágrimas também. Descobrimos que tudo aquilo que parecia grandioso para as pessoas sobre esperar um filho, pode não ser nada, quando elas dizem: 'ah, isso acontece, é bem comum'.

Nos hospitais, profissionais despreparados não cumprem regras básicas, como nos deixar em ambientes separados de mães com filhos vivos. O pai tem direito de acompanhar, de entrar quando quiser, mas esse direito não se estende a filho morto. A mãe que perdeu o bebê é tratada de outra forma. As informações sobre o que ocorre conosco são limitadas, entendíamos de gravidez, estudamos e ouvimos tantas mães, mas não entendemos da sua interrupção. 'Você pode esperar sair naturalmente, mas se quiser curetar é rapidinho, nem dói', dizem como se fossem tirar uma pinta da nossa pele. É estranho que a mesma sociedade que proíbe o aborto provocado trate de forma tão indiferente o aborto acidental, tão fria. Afinal, acreditamos ou não na alma daquele bebê que ainda não nasceu?

Da artista Fernanda Izar.
Da artista Fernanda Izar.

Abre-se um buraco dentro da gente, um vazio. Pensamos em não falar sobre isso, afinal, pode parecer que somos amaldiçoadas, incapazes, não 'seguramos o nosso filho', não seguramos a boneca. Cada mulher vive de uma forma diferente o luto, a perda. Mas se existem dor e delícia em ser mulher, o aborto com certeza faz parte da dor.

Repassamos na nossa memória cada refeição, a posição que dormimos, e até os nossos pensamentos, onde erramos? Na maior parte das vezes, não vamos encontrar motivo algum. Filhos simplesmente vão embora. E então, aquela parceira de todas as fases da vida se joga pra cima da gente: a culpa. As propagandas de berço, fraldas e afins demoram para sumir nas nossas redes sociais, os algoritmos da internet não  descobrem tão rápido que perdemos um bebê. Aliás, até o nosso corpo demora pra entender.

Nem todos sabem o que nos dizer, ouvimos muitas besteiras, e aqueles que conseguem nos ouvir com semblante de compreensão fazem do silêncio o melhor abraço. Em fóruns da internet, mulheres que não se identificam trocam experiências sobre a recuperação física e emocional. É impressionante como as mulheres podem ser a salvação de outras mulheres.

Aborto espontâneo, aborto retido, aborto provocado, natimorto, curetagem, expelir o embrião, o feto, são tantos termos que dão à despedida de ser mãe. A menina que ganhou a boneca não é frágil, e por mais que ela seja doce, pode passar por situações amargas inimagináveis. A mulher carrega a vida e a morte dentro de si e encontra em seus sonhos sentido na solidão. Existe algo dentro da gente, que é mais que vida e morte, é também passado e futuro. Nada explica, nós apenas sabemos.

Na tarde que eu recebi a pior notícia, quando não ouvi os batimentos dentro de mim, eu havia postado pela manhã um trecho escrito por Vinícius de Moraes que mais parece uma oração, é com ele que me despeço e peço a todas que, agarrando ou arremessando aquela boneca que ganhou na infância, solte a culpa de uma vez, deixe que ela vá embora e se permita amar a si mesma sempre, com a intensidade da natureza que pulsa misteriosamente dentro de nós:"


Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

(...)

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

(...)

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas 
E a loucura reside nesse mundo.

("O Desespero da Piedade" – Vinicius de Moraes)


Quer sugerir um próximo tema para o Mãe também reclama? Mande um e-mail para: paulamaciulevicius@gmail.com.

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