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Comportamento

Ritmo é acelerado, mas rotatórias abrigam quilômetros de histórias

Entre a distância de casa ou privilégio de ter um ponto para vender, há vendedores que preferem as rotatórias

Danielle Valentim | 23/09/2019 09:03
Júlio, João e Marcelo dividem espaço comuns, mas carregam histórias diferentes. (Foto: Paulo Francis)
Júlio, João e Marcelo dividem espaço comuns, mas carregam histórias diferentes. (Foto: Paulo Francis)

Divididos entre o privilégio de “ter” a própria rotatória e a distância de casa, vendedores compartilham o espaço e uma bagagem de histórias em Campo Grande. O Lado B percorreu pontos das regiões Norte e Oeste.

Na rotatória da Avenida Ernesto Geisel com a Rachid Neder, o vendedor Júlio Barbosa, de 59 anos, se diz privilegiado, primeiro por ter herdado a propriedade da família no local e pela rotatória que chegou anos depois.

“Eu nasci e fui criado aqui. Era do avô, passou para a minha mãe e agora é minha. Eu tenho o privilégio de já estar aqui, mas o fluxo de carros engana muito. Para para comprar quem já é seu cliente ou já comprou outra vez”, garante.

Júlio comercializa vários produtos ao mesmo tempo. (Foto: Paulo Francis)
Júlio comercializa vários produtos ao mesmo tempo. (Foto: Paulo Francis)
A venda nesse ponto já é bem conhecida. (Foto: Paulo Francis)
A venda nesse ponto já é bem conhecida. (Foto: Paulo Francis)

Diferente de outros vendedores, Júlio comercializa vários produtos ao mesmo tempo. Ele ocupa o próprio terreno para expor as mercadorias, mas fachada fica em frente à estrutura que organiza o trânsito no local.

“As frutas eu comecei há pouco, mas já vendi muito queijo, churrasqueira e doce. As redes sempre foram vendidas. Como eu estou em casa eu não me preocupo especificamente com o ponto, mas sempre aparece um ou outro para vender outras coisas”, garante.

Júlio admite que exista concorrência, mas que não disputa por espaço. Cada um chega no “miudinho” e expõe seu “ganha pão”.

“Alguns vendedores chegam, montam o carro, mas não ficam nem duas horas, porque a venda você tem que fazer o ponto. Vender é uma arte tem que praticar. Geralmente, as pessoas gostam de comprar de quem está fixo, do que trocando de lugar. Porque o fixo se der algum problema ele pode voltar para reclamar. Esses dias chegou um vendendo banquetas e eu já avisei que aqui estamos juntos, um cuida do outro. Mas essa disputa por espaço não tem, porque a pessoa já está na rua batalhando e a concorrência sempre existirá”, garante.

Em todos esses anos, Júlio já foi cobrador de ônibus, corretor de imóveis, trabalhou na prefeitura e até em dois mandados no governo de Pedro Pedrossian. “Agora estou na venda porque a gente tem de comer, beber e a vida continua. Eu herdei a propriedade na minha mãe e surgiu essa avenida que é outro privilégio e agora deixarei para meus filhos. Tenho o mais velho do primeiro casamento, que é médico e mora em Maceió, e uma caçulinha do segundo casamento”, conta.

Da construção ao artesanato - Acompanhado da ex-mulher, João José Bizerra, de 65 anos, veio de Recife (PE) há 32 anos. O objetivo era um emprego no Shopping Campo Grande, que estava em fase de construção.

A busca por uma vida melhor fez João atravessar divisas que seriam sua nova casa. “Eu sempre fui construtor e toquei toda a parte de acabamento do shopping na época como mestre de obra. A estrutura ficou pronta, mas eu não voltei e fixei endereço em Campo Grande. Na época vim com a esposa, mas depois separei. A mulher voltou para o Nordeste e eu me casei de novo aqui”, explica.

João José chegou aqui há 32 anos. (Foto: Paulo Francis)
João José chegou aqui há 32 anos. (Foto: Paulo Francis)
Todos os produtos são feitos pelo artesão. (Foto: Paulo Francis)
Todos os produtos são feitos pelo artesão. (Foto: Paulo Francis)

João sempre teve criatividade e o dom de criar coisas com as próprias mãos. Tudo que vende sai de sua própria cabeça. A peça mais barata é R$ 35 e a mais cara é o aparador de peroba rosa e envelhecida por R$ 600.

Como ninguém escapa de uma crise financeira, o pernambucano chegou a ter loja com suas artes, mas precisou baixar as portas. O fechamento não o desanimou e agora, ele encara a venda nas ruas. “Eu tive uma loja, mas como fechou coloco aqui para vender. Também faço deck de piscina e jardim suspenso com prateleiras para 10kg”, pontua.

Na rotatória da Avenida Mato Grosso com a Dr. Fadel Tajher Iunes, próximo à antiga casa de show Via Parque, João está há mais de um ano. Ele admite que escolheu o lugar pelo fluxo.

“Eu tenho carteirinha de artesão e tenho autorização para montar minhas peças onde quiser desde que não interrompa o trânsito. Eu escolhi por causa do movimento. Neste ponto da Mato Grosso fico quarta e sexta. No sábado vendo no trevo da 14 de Julho e nos outros dias estou nem casa fabricando peça”, conta.

Nas três décadas em terras sul-mato-grossenses, José só visitou o restante da família duas vezes, mas está planejando uma visita no ano que vem, afinal o pai já está com 90 anos.

Adeus que é “tradição” - O vendedor de redes ou redeiro, como ele se intitula, Marcelo Bruno Pereira Regis, de 26 anos, saiu de casa aos 18. Da cidade de Jardim das Piranhas, interior de Rio Grande do Norte, foi tentara vida em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.

“Tem que sair todo santo dia para vender”, diz Marcelo. (Foto: Paulo Francis)
“Tem que sair todo santo dia para vender”, diz Marcelo. (Foto: Paulo Francis)
A rede mais famosa: bucho de boi. (Foto: Marina Pacheco)
A rede mais famosa: bucho de boi. (Foto: Marina Pacheco)

Ele explica que essa debandada é comum, já que a remuneração na região nordeste nunca foi tão atrativa. “Lá esse negócio de jovem deixar a família e ir vender no meio do mundo é comum. Minha mãe teve que aceitar. La a renda é baixa e o que você recebe no mês só dá comida para 15 dias”, explica.

Com a pele castigada pelo sol, Marcelo conta que a rotina é a mesma todos os dias nos últimos anos. “Tem que sair todo santo dia para vender”. O rapaz deixou a casa onde viviam mais três irmãos, dois homens e duas mulheres, e alguns sobrinhos.

“Eu sou o terceiro mais velho. Saí de lá e fui direto para Caxias do Sul. Mudei de um calor de 40°C para -5°C. De Caxias subi para São Paulo onde fiquei mais oito meses até vir para Campo Grande. Já são oito anos de estrada. É uma experiência complicada, mas sempre vendendo coisas do nordeste”, diz.

Rede x buchada – Marcelo gosta de fazer sua propaganda e usa sua própria cultura para isso. “Nós somos nascidos e criados nas redes, aqui se escolhem camas, lá nos começamos na rede pequena, depois vai para a média até chegar na grande. “Mas as redes que eu vendo tem uma questão. Você só precisa dar dois impulsos para traz: balançou, dormiu”, garante Marcelo.

As redes têm diferença entre a pernambucana e a bucho de boi. (Foto: Marina Pacheco)
As redes têm diferença entre a pernambucana e a bucho de boi. (Foto: Marina Pacheco)

As redes têm diferença entre a pernambucana e a bucho de boi, sendo que a última leva esse nome, porque o trabalho de costura se assemelha ao estômago do animal. A opção mais barata é R$ 45, a bucho de boi é R$ 230 e as intermediárias entre R$ 80 e R$ 100. O preço muda de acordo com tamanho e tipo.

Dos oito anos em Campo Grande, Marcelo rodou até se fixar na rotatória da Euler de Azevedo com Avenida Tamandaré. A busca passou pelo Aeroporto Internacional, rodoviária nova e até na rotatória próximo ao posto do Bairro Nova Bahia.

Sempre em rotatórias e nas saídas da cidade, o redeiro garante que é uma estratégia de venda. “Nas rotárias e saídas da cidade passa gente de todo canto. E para chegar a um novo ponto e montar sua venda, é o que sempre digo: tem de saber entrar e sair dos cantos”, conta.

O rapaz divide uma casa com outros 10 vendedores. Todos da região Nordeste. A visita à família acontece a cada dois anos, a próxima deve acontecer entre dezembro deste ano e janeiro de 2020.

“Os vendedores que você encontra assim vendendo redes são todos nordestinos. Tem gente de São Bento, na Paraíba, de Caicó, do Rio Grande do Norte. E não é criticando os jovens, até porque sou jovem também, mas os jovens daqui são preguiçosos, nenhum sai no mundo para vender. Se você vê um redeiro sentado certeza que será do Nordeste, se tiver a cabecinha grande é do Ceará. Mas estou pretendendo ir visitar minha mãe em dezembro ou janeiro”, garante Marcelo.

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