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Comportamento

Salão de beleza é conhecido pela felicidade de 4 irmãs, duas delas transexuais

Silvana nasceu menina e hoje é homem, mesmo sem trocar nome de batismo; Patrícia nasceu menino e conquistou uma vida nova

Thailla Torres | 12/03/2018 08:16
Na sequência, Sirlene, Silvana, Patrícia e Sirlei, irmãs que lutam de mãos dadas contra o preconceito.(Foto: Marina Pacheco)
Na sequência, Sirlene, Silvana, Patrícia e Sirlei, irmãs que lutam de mãos dadas contra o preconceito.(Foto: Marina Pacheco)

Em um salão de beleza, do bairro Universitário, as proprietárias Patrícia, Sirlei, Silvana e Sirlene têm muito a ensinar. O quarteto de irmãs veio de Vicentina, a 251 quilômetros de Campo Grande, para recomeçar a vida de mãos dadas e acabaram dando exemplo no bairro pelo respeito à diversidade. Das 4, 2 são transexuais, mas só descobriram isso na vida adulta. As irmãs defendem que juntas são mais fortes contra o preconceito.

Por muito tempo o espelho mostrava algo que Patrícia Nunes, de 47 anos, e Silvana Nunes, de 39, não se identificavam. Patrícia nasceu no corpo de um menino, mas nunca foi ele. Já Silvana veio menina, mas desde pequena sentia algo diferente, até que ano passado, soube que era um homem 'preso' no corpo de uma mulher.

Desde que se descobriram e foram trabalhar juntas, no salão de beleza criado por Patrícia, elas chamam atenção de quem chega ao estabelecimento. Muitos questionam a união, falam sobre aceitação e, principalmente, tiram dúvidas sobre a sexualidade.

Mais do que beleza e auto-estima, homens e mulheres fazem do salão um divã, segundo a empresária. "Muita gente fica surpresa vendo duas irmãs héteros e duas transexuais juntas, trabalhando no mesmo lugar e na maior alegria. Com tanta família que abandona parentes por conta da sexualidade, nossa relação surpreende e a gente acaba compartilhando nossa experiência".

Patrícia Nunes, 47 anos e dona de um salão de beleza. (Foto: Marina Pacheco)
Patrícia Nunes, 47 anos e dona de um salão de beleza. (Foto: Marina Pacheco)

Patrícia começa a história lembrando que desde pequena seu comportamento fugia do padrão esperado para um menino. Preferia andar com garotas e às vezes sentia mais atração por meninos. Era comum Patrícia ouvir coisas como “boiola” e “veadinho” durante a infância. As palavras machucavam, mas, ao mesmo tempo, confundia.

Como só tinha referências de homossexualidade e heterossexualidade, Patrícia acabou se definindo como gay no primeiro momento. "Tanto que procurei uma psicóloga para não ser gay. Mas a orientação que recebi é que tinha que fazer um curso de cabeleireiro, porque ser gay na minha época, não tinha chance no mercado de trabalho", recorda.

Mas Patrícia sentia que na época não estava no corpo certo, até que a modelo transexual Roberta Close tornou-se sua grande referência, "quando vi aquele mulherão, pensei: É isso que eu sou", lembra. Ali compreendeu a diferença entre gênero e orientação sexual. "Entendi que eu era realmente uma mulher, isso aos 35 anos".

Patrícia lembra que foi em busca do hormônio feminino, "porque quem não tomava hormônio, não existia", diz. Na época da escola sentiu a dor da violência. "Para entrar no banheiro da escola, só depois que todo mundo entrava na sala de aula, eu tinha medo de ser agredida físicamente, mais do que já apanhava com palavras".

Mas a luta contra o pior, começou dentro de casa. "Primeiro contei para uma tia, para que a informação chegasse até a minha mãe. De pouco em pouco fui conquistando um espaço dentro de casa que me surpreendeu".

Com amor e apoio à filha, os pais de Patrícia entenderam logo de cara, que ser transexual não é escolha. "Isso fez toda diferença para entender que eu era uma mulher. Porque para quem vive numa cidade do interior falta muita informação, e o preconceito é ainda maior, mas meus pais me respeitaram, me apoiaram e nunca foram preconceituosos comigo".

Do destino tantas vezes fadado à prostituição, Patrícia conseguiu o seu espaço também no mercado de trabalho, "virei uma profissional da beleza, graças ao amor da minha família, das minhas irmãs. Mas sei que isso é uma exceção, infelizmente muitas de nós acabam indo parar na calçada, tendo que se prostituir por obrigação e não por escolha".

No processo de transição, a mudança de sexo também veio à tona. Mas Patrícia decidiu não fazer a cirurgia. "Já foi constatado que eu deveria fazer a mudança, mas ainda tenho medo, sinto falta de informação e tenho receio que falte prazer no futuro", diz. E desabafa sobre o preconceito, "se eu já tivesse feito a cirurgia estaria casada porque assim, muitos homens não te assumem. Mas isso é uma escolha minha e se eu não quiser fazer a cirurgia, não faço".

Silvana Nunes, 39 anos, hoje é feliz como barbeiro.
(Foto: Marina Pacheco)
Silvana Nunes, 39 anos, hoje é feliz como barbeiro. (Foto: Marina Pacheco)

Uma nova vida - Aos 39 anos, Silvana Nunes, entendeu a vontade que sempre teve de estar em outro mundo. Os seios, o cabelo comprido e a pele lisa, nada disso fazia sentido quando se olhava no espelho e sorria imaginando, se um dia, estivesse em um corpo masculino. Foi quando ela compreendeu que nunca foi lésbica, mas na verdade, um homem no corpo de uma mulher.

Antes de ter essa compreensão, ela sentiu a diferença logo na infância, "aos 11 anos percebi que gostava das meninas e como sempre fui uma pessoa decidida, de imediato fui pedir orientação na minha escola. Na época conversei com a orientadora e ela falou que eu era homossexual".

Desde então Silvana levava uma vida normal, exceto nas vezes em que se olhava no espelho e sentia ser ainda mais diferente das outras mulheres. "Por exemplo, eu sempre olhava minhas amigas lésbicas de biquíni e tinha vontade de usar uma sunga. Para me sentir mais à vontade usava camiseta e short. Também nunca gostei de lésbica, sempre tive atração por mulheres héteros e namoradas que fossem héteros".

Após 13 anos de casamento, uma onda de informações sobre diferença de gênero e histórias cada vez mais parecidas com o que Silvana sentia, veio a revelação. "Faço muita terapia e fui observando com o tempo que eu estava me maltratando. Trabalhei em quatro grandes empresas e de todas eu pedi demissão, mesmo ganhando bem, porque sentia que estava faltando algo em mim. Eu precisava achar as respostas para o que eu sentia e só então compreendi, ano passado, que na verdade sou um homem".

Silvana mudou de profissão, hoje é barbeiro, se comporta do jeito que se sente melhor e não nega ser um homem. Apesar de gerar confusão, continua com o mesmo nome de batismo feminino. "Aos 40 anos não quero passar pela fase de transição. É uma escolha e não muda o fato de que continuo sendo homem".

O relato das irmãs são motivo de orgulho para Sirlene. (Foto: Marina Pacheco)
O relato das irmãs são motivo de orgulho para Sirlene. (Foto: Marina Pacheco)
E também para Sirlei. (Foto: Marina Pacheco)
E também para Sirlei. (Foto: Marina Pacheco)

O relato das irmãs são motivo de orgulho para Sirlei Nunes, de 41 anos e Sirlene Nunes, de 35, que escutaram atentas sobre o processo de redescoberta de Silvana e Patrícia. "O mundo precisa de amor e informação para os transexuais. E esse apoio da família é fundamental. Minhas irmãs nunca foram diferente pra mim por conta disso", diz Sirlei.

A união que todo mundo questiona e sai dali surpreendido, é na verdade reflexo da educação e caráter dos pais, acredita. "Veio de berço porque meu pai teve 16 irmãos homens, mas nunca existiu preconceito com nossas irmãs. Também não existia machismo dentro de casa".

Por isso, quando os pais faleceram, há dois anos, as irmãs resolveram se unir. "Eu já tinha o meu espaço e decidi ver toda minha família feliz. Como irmã mais velha quis que todas estivessem comigo. Sirlei é depiladora, Sirlene designer de sobrancelha, Silvava barbeiro e eu também atuo como cabeleireira. As quatro reuniram talento num lugar só para ser feliz sem preconceito", diz Patrícia.

Hoje, além de empresária, Patrícia também é palestrante em um projeto da psicóloga Adriane Lobo, que busca levar informações sobre a transexualidade para dentro das universidades de Campo Grande. "Sempre tivemos esse ladinho da diversidade dentro de casa, mas agora a gente está tirando o melhor disso e levando informação para outras pessoas".

Enquanto Patrícia vai à palestras, as irmãs falam o que pensam dentro do salão. "Aqui não tem meio termo e ninguém se esconde. Todo mundo sabe que trabalham duas transexuais e todos são bem atendidos. Não é a toa que chamamos aqui de terapia, quem entra sai revigorado, só não damos o diagnóstico", brinca Silvana.

Sem medo de repercussão diante de suas vidas expostas, Patrícia defende que falar é a melhor forma de esclarecer e ir contra o preconceito. "As pessoas precisam de informação. Só assim elas se tornam esclarecidas para se empoderar e lutar pela sua felicidade. Quanto mais a gente esconde, menos a gente ensina. Quem sabe assim, famílias deixem de abandonar as pessoas pela sua identidade".

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