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Comportamento

Silêncio, choro e luto Kadwéu:  morreu o cacique Ambrósio

Na ultima terça-feira (4) morreu um dos grandes caciques de Mato Grosso do Sul, Ambrósio da Silva

Bosco Martins, especial para o Campo Grande News  | 06/05/2021 15:26
Ambrósio da Silva no comando da rebelião dos kadiwéus em 1985 (Foto: Arquivo JN/Globo)
Ambrósio da Silva no comando da rebelião dos kadiwéus em 1985 (Foto: Arquivo JN/Globo)

Silenciem as flautas, tirem-se  as pinturas e adornos do corpo,  dispam-se das alegorias pois  é hora de recolhimento, choro, tristeza e luto. Nessa ultima terça-feira do mês de maio (dia 4)  morreu um dos grandes caciques do povo kadiwéu Ambrósio da Silva. Filho do antológico cacique  João Príncipe que marcou profundamente a história dessa nação Indígena. João Principe, o pai,  morreu na década de 90  picado por uma  cobra boca de sapo. Se tratou fazendo uso de ervas medicinais e  se negou ao tratamento  na cidade. Ambrósio, o  filho,  morreu de Covid 19,  aos 70 anos, após se infectar num hospital de Campo Grande onde estava internado para tratamento  de problemas no coração.

Conheci o grande guerreiro e sua familia  quando repórter da  TV Morena. João  Príncipe, Ambrósio,  seu irmão Martim da  Silva (também já falecido). Eles tinham ainda mais duas  irmãs Sandra e Saturno  a mais  velha, e o irmão caçula,

Adailton, filhos de seu João Príncipe com dona Lair Pinto. Minha  relação com as lideranças Kadwéus  se iniciou, quando fui  à aldeia São João a trabalho para produzir uma reportagem sobre a rebelião na Reserva Kadwéus contra os arrendatários de pastos, na década de 80. O material ganhou espaço no Jornal  Nacional  e no  Fantástico.

O histórico acordo de retomada da reserva  pelos Kadiwéus se deu após a nossa equipe de reportagem, funcionários da Funai e da Policia Federal terem sido  feitos reféns pelos  índios, até que o conflito fosse  resolvido. Na época, costuramos um acordo  com o Governo Brasileiro, através da Funai e do Governo de Mato Grosso do Sul,  administrado então  por Wilson Barbosa Martins.

Registro raríssimo do Cacique João Príncipe que morreu picado de cobra jararaca-cruzeira, também conhecida como boca de sapo. (Foto: arquivo pessoal BM)
Registro raríssimo do Cacique João Príncipe que morreu picado de cobra jararaca-cruzeira, também conhecida como boca de sapo. (Foto: arquivo pessoal BM)

Corria os  anos 1980 e as  tensões escalaram perigosamente com mais de 1,8 mil invasores dentro da reserva — resultado da "vista grossa" dos militares. Ao pé da Serra da Bodoquena, no norte da reserva, Kadiwéus prepararam-se para a guerra contra os arrendatários, inclusive com denúncia de participação de funcionários da Funai.

A tensão diminuiu em 1985 por meio desse  acordo de paz  que teve também a participação  de figuras como Mário Juruna - o primeiro deputado federal indígena do Brasil, o índio Terena Lisio Lili, na época dirigente estadual da Funai, entre outros,  sobre os olhos da opinião pública nacional.

Essa história, bem como seus personagens, está registrada nas imagens  da reportagem tendo no comando da rebelião  os três históricos  personagens  (o Cacique pai,  e os dois filhos , Ambrósio e Martim),

Com a morte de Ambrósio desaparecem uma das mais significativas  lideranças do Território Indigena Kadwéu, hoje  representada por cerca   de 1.600 indígenas.

A terra dos kadiwéus remonta ao segundo reinado, quando o imperador Dom Pedro II doou a área como contrapartida pela participação dos indígenas na Guerra do Paraguai.  Abrange áreas no Pantanal e  no Planalto da Serra da Bodoquena, no oeste do Estado. É a maior reserva indígena do Pantanal; o Território Indígena Kadiwéu (TI Kadiwéu) e  possui 538 mil hectares.  O território sofreu com o grande número de incêndios em 2020, foram 247,3 mil hectares queimados, 45,9% área total, até o fim de novembro, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ).

Ambrósio da Silva era um diplomata. Um homem alto, elegante e discreto. Não atuava mais como cacique e foi um dos  mobilizadores para  criação da Abink (Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu), em dezembro do ano passado. Sua importância e legado se revela na emocionante manifestação  de Examelexe Bení  Kadwéu, conselheira  de outra importante  Associação da região e na qual  Ambrósio da Silva era  o Presidente, a Associação das Comunidades Indígenas da TI Kadiwéu (ACIRK).

Ambrósio da Silva em foto mais recente com a secretária de Assuntos Indígenas, Silvana Terena (Foto: Acervo Secretaria Indígena)
Ambrósio da Silva em foto mais recente com a secretária de Assuntos Indígenas, Silvana Terena (Foto: Acervo Secretaria Indígena)


A jovem dirigente  indígena  revela uma premonição de  despedida  do grande  líder  sobre sua morte  e lhe  presta uma  homenagem na língua  de origem: "o mestre Ambrósio da Silva foi para a morada eterna. Nosso líder a  quem devemos  a honra, de  acompanhar em algumas agendas. Na última reunião, nos pediu  que ficássemos preparados, pois logo iríamos ficar "desacompanhados" dele. Nos pediu para cuidarmos de tudo que nos pertence, o território e o acervo de nosso povo  que  é a nossa riqueza cultural."

Bení Kadwéu  em  outra  fala com ele diz: "que ele seria um líder insubstituível, uma figura que nos faria  muita falta, aquele líder de muitas histórias e boas maneiras no agir e no falar, que sabia liderar com sabedoria e tamanha inteligência,  e  nobreza e que nobreza ele tinha! Estamos inconsoláveis  e nossos  anciãos, a quem ele tratava como niwotagodepodi, (meus senhores) também.

O povo Kadiwéu em luto manifesta: "Banagha adiwikodeni niwaagodi, ghodamipi onibeotaghagi, digoida miniwatagha Aneotedoghoji."

(Muito obrigada meu senhor, nossos ancestrais estão te esperando na casa do senhor Deus no céu), finalizou.

Ambrósio é mais um  dos grandes amigos que fiz em Mato Grosso do Sul. Ele morava em Bonito com sua esposa, a Lira; a  companheira de mais de cinco décadas o deixou em 2020. A morte de Lira com quem cultivou uma das mais belas histórias de amor e companheirismo o deixou "amuado", o luto bateu a sua porta e ele o recebeu.

O aniversário de 80 anos de Lira comemoramos no Hotel Nacional, "a casa" de Ambrósio e da Lira em Campo Grande e palco de reuniões das lideranças Kadwéus na capital. Sempre nos encontrávamos lá para uma boa prosa.

Ambrósio da  Silva era índio guerreiro e grande intelectual. Gostava muito  de ler e tinha por diletantismo á literatura. Nos encontrávamos, também, nas Feiras Literárias de Bonito, onde  ele era um fiel frequentador;  lembro  tê-lo visto  comprar  pelo menos uns 15  livros.

Ambrósio  como cacique foi sempre generoso, mas bravo e determinado na defensa dos interesses de seu povo. Líder político e espiritual,  era um grande conhecedor  da história do mundo, de sua gente, dos cantos, de todo o universo de uma língua que esta  em risco de extinção. A  morte  de Ambrósio significa a perda substancial de boa parte da linguagem kadwéus  que ele dominava com maestria e conhecimento.

Berta Ribeiro com os Kadiwéus nos anos 1940; ela e o marido Darcy Ribeiro viveram com os indígenas e estudaram seus costumes (Foto: Fundação Darcy Ribeiro)
Berta Ribeiro com os Kadiwéus nos anos 1940; ela e o marido Darcy Ribeiro viveram com os indígenas e estudaram seus costumes (Foto: Fundação Darcy Ribeiro)

O ano de 2021 esta sendo devastador para brancos, negros, amarelos, indígenas... especialmente para os indígenas mais desprotegidos desse vírus. E,  cada   vez mais, fica explícito e atordoante  o efeito epidistemicida que acompanha  as mortes decorrentes  do Covid 19.

Nesta homenagem reverenciamos muitos outros  anciãos e anciãs indigenas ( Eliseu Lili, outra grande liderança Terena, também morreu de Covid 19 e outras etnias distribuídas pelo país) que também perderam a vida.  Ambrósio estava  consciente dos riscos  terriveis da pandemia   que levou seu povo a suspender  as festas tradicionais anuais.

Levado por seu sobrinho Adeilson da Silva de Campo Grande  para ser sepultado  na reserva Kadwéu, seu corpo foi recebido na entrada  da aldeia, já tarde da noite desta última terça-feira, pelo Cacique  Ciriaco Ferraz e centenas de  patrícios que  liderou.

Por conta dos protocolos do Covid,  não teve nenhum ritual em seu enterro na Aldeia  Alves de Barros, onde se criou. Restam  a lição deixada por ele  e  o reconhecimento  de seu povo resumido na lembrança de uma anciã representando sua nação: "Jamais  esqueceremos a sua  luta. Manter  a nossa cultura para nunca  perdemos nossa identidade. manter  sempre o nosso território protegido para que o nosso povo tenha  um futuro. Sejamos  dignos com as pessoas que cuidamos como ele sempre foi, descanse em paz, homens com grandes histórias, não morrem nunca."

Nota dos Pesquisadores Associados ao Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Diversidade UEMS-CNPq

Os (as) Pesquisadores(as) associados ao Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Diversidade UEMS-CNPq, vinculado ao Curso de Pedagogia e ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em Educação da Unidade Universitária de Campo Grande da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS vem por meio desta nota se solidarizar com os sentimentos das(os) familiares e amigos(as) de Sr. Ambrósio da Silva pelo seu falecimento, ocorrido em decorrência das complicações da Covid-19 na manhã desta terça-feira, dia 04 de maio de 2021.

Sr. Ambrósio era filho do Cacique João Príncipe, expressiva liderança no período da ditadura que lutou muito, na década de 1980, pela reconquista e manutenção do território junto aos (as) guerreiros (as) Kadiwéu que vivem hoje na Terra Indígena Kadiwéu, conhecida como Campo dos Índios em Porto Murtinho, MS.

O Grupo é composto por estudiosos (as) da cultura e da saúde indígena e, também, por estudantes e profissionais da educação escolar indígena. Diante dessa convivência sentimos a dor do povo Kadiwéu nesse momento de despedida. Com esse sentimento de perda incalculável para os (as) entes queridos (as), apresentamos o nosso apoio e a nossa solidariedade.

Profa. Dra. Léia T Lacerda e Discente do Curso de Pedagogia Josemar Matechua Pires.

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