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Comportamento

Um mês sem fumar pasta-base é vitória de Ezequiel, morador de rua há 25 anos

Paula Maciulevicius | 27/03/2017 06:05
As paredes contam o que o sorriso faltando dentes comemora: a felicidade de um mês sem fumar. (Foto: Marcos Ermínio)
As paredes contam o que o sorriso faltando dentes comemora: a felicidade de um mês sem fumar. (Foto: Marcos Ermínio)

"Se eu conto a minha história? Com o maior prazer do mundo. Eu sou o Ezequiel José Pereira, tenho 37 anos e a minha profissão é... Eu não tenho profissão, eu não trabalho, nem nunca trabalhei. Eu vivi 25 anos nas ruas como morador de rua. E a minha história é a seguinte..."

Se Ezequiel tivesse cadeira, puxaria duas para que a gente ouvisse o que ele tem e quer dizer. Magro, uma camisa polo veste o rapaz, que cobre a careca com boné e tem nas mãos uma sacola plástica com o "tesouro" que se compara a ter filhos: uma Bíblia. Debaixo de chuva, ele vai todos os sábados para um culto na Rotunda, na Esplanada Ferroviária, que é exatamente onde a gente se encontra. 

Nascido na Bahia, Ezequiel conta que fugiu de casa aos 10 anos, porque a mãe não aceitou a dependência química. "Quando conheci a droga, ela - pausa para a crise de tosse justificada pelo uso de décadas de pasta-base que o levaram a ter apenas metade de um pulmão - ela.. disse: 'meu filho: você escolhe a casa ou a rua?' E eu escolhi a rua", narra.

Ezequiel mostra a facada que lhe cegou de um olho no presídio. (Foto: Marcos Ermínio)
Ezequiel mostra a facada que lhe cegou de um olho no presídio. (Foto: Marcos Ermínio)

Opção que, segundo ele, o fez cair na estrada e chegar aqui. "E nessa vida até hoje, quer dizer, saindo, tentando sair. A luta não é fácil, essa vida da gente na rua não é facil". No histórico, a dependência também o fez puxar cadeia. O crime foi latrocínio. A pena de 10 anos ele garante que já foi cumprida, no Presídio de Segurança Máxima de Campo Grande. Passagem que ele prefere deixar no passado. "Nunca mais me envolvi com isso, não roubo na rua, não pego bolsa e nem celular, não entro em mercado ou loja. Só roubei da minha família", assume.

Há seis meses, Ezequiel passou a dar um endereço diferente do velho pontilhão da Barão do Rio Branco, que por anos foi casa, cobertor e lar. Hoje é o Cetremi (Centro De Triagem e Encaminhamento do Migrante) onde reside. 

"Eu vou falar pra senhora o que eu fazia na rua era fumar droga e correr atrás de dinheiro. Quando faltava, eu ia vender picolé. Na vida o que eu mais cheguei a fazer foi pedir dinheiro", admite.

"Solitário", Ezequiel fala que por estratégia de sobrevivência, era separado dos outros, longe das "turminhas". "A rua é frio, você tem que encarar. É chuva, você tem que encarar e às vezes você tem que sair correndo de uma polícia, de guarda. É uma tribulação. Se você conseguir passar essa tribulação, você veve. Eu mesmo consegui. Sou dos mais antigos, lá da minha época, só alguns que sobreviveu, o resto morreu quase tudo".

"Do que eles morrem? Uns batido, outros de faca, são vários tipos de morte que acontece na vida da gente de rua. Se você procurar o errado, vai morrer. Se andar com quem não presta, vai morrer do mesmo jeito. Você tem que procurar desviar, senão vai pagar pelos atos dele", explica sobre as leis.

A tatuagem de "Formiguinha", apelido que veio das ruas. (Foto: Marcos Ermínio)
A tatuagem de "Formiguinha", apelido que veio das ruas. (Foto: Marcos Ermínio)

Sobre o vício, ele não quantifica as vezes em que a pasta-base entrava no corpo diariamente. Também não contabiliza o quanto gastava. O que tivesse em mãos, ou vestindo, era moeda de troca para a zuca. 

"É 24h o povo te chamando: 'vamo ali Formiguinha, vamo pra uma quebrada ali", reproduz. O apelido vem da Formiga Atômica tatuada em um dos braços. Tatuagem e nome que vieram das ruas. 

Das chances de morrer, ele também perdeu as contas. De uma quase overdose em 2007, passando pela facada que o deixou sem enxergar da vista esquerda e chegando à perda do pulmão. "Eu só tenho metade de um, não tenho uma respiração legal. O que aconteceu? Explodiu. Eu perdi com droga, usei muita química. Já vi vários camaradas meu morrer assim", contextualiza.

Em casa, são 24 filhos. Todos evangélicos. "Crente" ele foi por apenas quatro anos, maior período em que resistiu às drogas. "Só que quando caí, caí com tudo". A gente nunca conversou com um morador de rua e dependente químico há tantos anos que conseguisse expressar com clareza sua trajetória linear.

Ezequiel tem vocabulário, apesar de nenhum estudo, tem lucidez e diz não ser o único. "Quem usou desde os 10 anos de idade, chegar neste porte que eu tô hoje, é... Mas assim, você chega, se souber viver. Eu conheço gente que vive mais de 40 anos na rua e que vai fazer qualquer coisa pela droga dele". Aí a gente não sabe se ele fala de si ou dos outros. 

Nas mãos, a Bíblia que para ele é tesouro comparado a ter filhos. (Foto: Marcos Ermínio)
Nas mãos, a Bíblia que para ele é tesouro comparado a ter filhos. (Foto: Marcos Ermínio)

A vida na rua sempre foi, conforme classifica, "desordem e sem sucesso". E o que ele entende por isso? Não ter formado família, não ter casa, filhos e nem uma esposa "digna". "Só que eu pus na cabeça que não vou fumar mais e tô conseguindo. Dona, eu tô um mês sem usar nada. Sem colocar aquilo na boca.

A droga? Eu sinto, como eu sinto falta. Dá vontade de sair na rua, de dormir na rua, de ficar cuidando carro", descreve a sensação.

O um mês foi completado no final de semana que passou. E comemorado no culto. Para ficar longe do que lhe matou aos poucos, é preciso criar mais estratégias.

"Pra não ir atrás, eu não ando com quem fuma. Na hora que vem, eu corro. Se eu tiver com dinheiro no bolso, entro no mercado, na loja ou num bar e peço um guaraná pra adoçar a boca pra eu sentir menos vontade. Assim eu esqueço. Porque se eu ficar andando e pensando nela, o primeiro lugar que eu vou é na biqueira". 

Como quem tem em mente as reuniões de AA, Ezequiel repete para si mesmo. "Um dia de cada vez. Hoje eu consegui ficar sem e amanhã eu tenho que ser melhor que hoje. Se eu pensar que eu bom, eu vou procurar ela e voltar para a estaca zero".

Sem ler, ele também repete para si o versículo que tem como lema. "Tudo posso naquele que me fortalece. Jeremias 3,4. Toda vez que eu lembro, me fortalece mais ainda. O mundo acha que eu não consigo, mas pra Deus eu consigo ter valor ainda. Muitos não acreditam na gente, mas eu acredito. Eu tenho que pensar que eu consigo".

Sabe por que ele aceitou falar com a gente? Só no final que Ezequiel explica. "Através de mim, outras pessoas podem ver 'ele melhorou' e melhorar também".

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 "Através de mim, outras pessoas podem ver 'ele melhorou' e melhorar também". (Foto: Marcos Ermínio)
"Através de mim, outras pessoas podem ver 'ele melhorou' e melhorar também". (Foto: Marcos Ermínio)
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