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Comportamento

Uma medula ordinária e os meses surpreendentes que a leucemia tem trazido

Alcindo Rocha | 30/04/2015 06:23
Alcindo em selfie nesta segunda, depois de quase dois meses de alta. (Foto: Arquivo Pessoal)
Alcindo em selfie nesta segunda, depois de quase dois meses de alta. (Foto: Arquivo Pessoal)

Em uma época repleta de conquistas e profissionalmente promissora, o jornalista Alcindo Rocha bateu com força em um muro alto e muito espesso. De repente, ele descobriu a leucemia. Mas outra surpresa ainda estava por vir, do outro lado dessa contradição que é a vida. O ano tem sido comovente para ele, em vários aspectos, azar, sorte, ou seja lá o nome disso que o próprio Alcindo relata agora no Lado B.

Uma medula ordinária

Durante minha primeira internação decorrente da leucemia pude ouvir algumas histórias sobre outros pacientes. Mesmo sem contato pessoal ou algo do tipo "área de convivência", se você permanece muitos dias internado acaba obtendo dos enfermeiros tais informações alheias.

Dois casos me chamaram a atenção por razões diferentes. Primeiro o de um senhor que ficava em frente ao meu quarto. Não sei qual era o tipo de câncer que ele tinha, mas o fato é que depois de muitas semanas de alta hospitalar ele lá permanecia, já que nenhum filho ou outro parente se dignou a buscá-lo e acolhê-lo.

A família e a resignação - Sem o respaldo familiar, a saída ao hospital foi recorrer ao serviço municipal de assistência social para localizar um estabelecimento no qual o paciente pudesse se instalar. O asilo era uma alternativa, mas até onde sei, seu caso não tinha sido solucionado até a minha alta hospitalar.

Não sei e nem quero imaginar que mal esse idoso pode ter feito aos seus a ponto de haver tal rejeição. Também não sei se algum mal justifica a conduta da sua família. De fora, apenas consigo ser empático o suficiente com esse senhor a ponto de imaginar o tormento psicológico dele por não ter o apoio familiar numa situação tão dramática como é o tratamento de um câncer. Eu conseguia admirar o fato de ele aparentemente lidar com a situação com tanto estoicismo.

Quanto a mim, sei que é fundamental o apoio que desde o começo estou tendo de familiares e amigos, sem os quais esse longo caminho do tratamento da leucemia seria muito mais pedregoso. Sempre me considerei alguém emocionalmente muito controlado - peguemos o caso da própria leucemia: desde o diagnóstico, passando pelos intermináveis 51 dias da primeira internação, a infecção generalizada que adquiri no hospital, as dores que senti devido a procedimentos sem anestesia, os efeitos colaterais da quimioterapia etc., até agora não verti uma lágrima sequer -, mas sei que teria fraquejado não fosse família e amigos.

A medula e o infortúnio - O outro caso se refere ao paciente internado no quarto contíguo ao que eu estava. Tinha por volta dos 30 anos e se tratava de uma recidiva. Ele voltou a adoecer depois de mais de ano de uma medula aparentemente recuperada, já que não localizou no primeiro tratamento um doador de medula óssea compatível. Se já é difícil receber a notícia da doença pela primeira vez, posso imaginar o baque quando há uma recidiva.

A quimioterapia, grosso modo, é como um "reset" da medula óssea. Um remédio e um veneno a um só tempo, ela elimina as células leucêmicas (também chamadas células blastos ou células jovens), mas também deprime a produção dos glóbulos brancos e vermelhos, bem como das plaquetas. Disso advém enfraquecimento do sistema imunológico, anemia, dificuldade na coagulação sanguínea etc.

Alguns tipos de leucemia só se curam depois do transplante de medula óssea, após os ciclos de quimioterapia necessários. Porém, nem sempre os pacientes encontram doadores compatíveis na própria família, é quando surge o calvário da busca nos bancos de medula ou mediante campanhas para ampliar o volume de doadores cadastrados. É uma batalha paralela às demais.

A batalha e a guerra - Nesta semana, já há quase dois meses de alta hospitalar eu recebi a notícia que dos meus cinco irmãos dois apresentam medulas ósseas idênticas à minha. Considerando a trajetória do tratamento e como ele deve concluir - com o transplante - a boa-nova nos deixou a todos aliviados. É algo a menos com que me preocupar, já que ainda há muita quimioterapia pela frente.

Aprendi que em meio a tanto transtorno que doenças como a leucemia provocam na vida da gente, é de se celebrar essas vitórias provisórias. Desde janeiro, quando fui diagnosticado, até agora e pelos próximos meses, muito embora tenha compartilhado do convívio familiar, a sensação é de adentrar um limbo estéril, destituído da rotina de trabalho, do lazer, da vida comum. É viver sob uma espécie de redoma.

Quando confrontamos a doença com a fragilidade da vida, não há garantia de sucesso em momento algum, e a guerra é maior que as suas batalhas sucessivas. O que podemos fazer é nos preparar com as armas que temos: acreditar que tudo vai dar certo, mas também agir para que isso aconteça (uma dieta adequada, seguir o tratamento conforme prescrito, manter uma disposição psicológica favorável, buscar terapias alternativas). Parece absurdo, mas há quem, após o diagnóstico de câncer, recuse o tratamento!

Post scriptum - Ao senso comum, chamar algo ou alguém de "ordinário" é pejorativo, pois seria algo vulgar ou indesejável. Pode ser interpretado também como um gesto de revolta e nesse sentido, uma medula que não funciona como deveria é uma medula ordinária!

Por outro lado, no dicionário, ordinário denota algo comum, habitual, normal. Nesse ponto, só posso ser grato à sorte de dentre seis irmãos, três apresentarmos medulas ósseas idênticas, comuns, ou seja, ordinárias :-) !

Mais de um amigo me encorajou a escrever este artigo como forma de simbolizar esperança para quem estiver nas mesmas condições que a minha.

Se houver alguma moral ou mensagem nesse texto, talvez seja a seguinte: embora o diagnóstico de leucemia possa provocar ou revolta ou desespero, não o veja como um decreto de causa mortis.

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