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Consumo

Com roupas penduradas no portão, família compartilha com quem passa pela rua

No Varal da Solidariedade de mãe e filhos, quem precisa leva… quem não precisa deixa

Gustavo Maia | 14/12/2018 08:35
Anúncio escrito à mão faz apelo ao desapego. (Foto: Gustavo Maia)
Anúncio escrito à mão faz apelo ao desapego. (Foto: Gustavo Maia)

Passando pela Rua Cotegipe, no bairro Coophasul, é impossível não notar um portão repleto de roupas penduradas e com sapatos simetricamente organizados na calçada. Numa olhada rápida, não dá para entender exatamente do que se trata, mas, com um pouco mais de atenção, é possível ler no cartaz pendurado no portão, escrito à mão, “Varal da Solidariedade Anglicana - Quem precisa leva… quem não precisa deixa” com um ponto de exclamação em formato de coração.

Adriana Bilo, de 45 anos, é a dona da casa e da iniciativa que vem beneficiando quem passa por ali há quatro dias, e é ela quem nos explica de onde veio essa vontade de compartilhar. Tudo começou com um brechó da Igreja Anglicana, organizado por ela na própria casa, quinzenalmente, para arrecadar fundos para os trabalhos religiosos.

Mas, com o aumento das doações, o jeito foi deixar as vendas de lado. “As pessoas doam bastante, e aqui em casa o espaço é pequeno, então a gente decidiu doar. A gente tava organizando o brechó, arrumando as roupas nas caixas, e daí tivemos essa ideia - vamos doar”. Quando era criança, lembra ela, trocava de roupa com amigas do bairro onde vivia, e essas pequenas alegrias da infância jamais foram apagadas. “A roupa podia ser usada, mas era nova pra gente que recebia porque era a primeira vez que a gente tava usando”.

A alegria de quem doa alegria. (Foto: Gustavo Maia)
A alegria de quem doa alegria. (Foto: Gustavo Maia)

Só que ela não faz nada sozinha, e é aqui que entram os responsáveis pela execução da ideia: a dupla Keirrison e Yarley, filhos de Adriana, de 7 e 11 anos de idade. No início da conversa, eles são bastante tímidos, mas depois de um tempo vão se soltando e começam a contar de tudo: desde quem faz o quê no varal da solidariedade, até a origem de seus nomes, um tanto quanto incomuns. Keirrison vem do ex atacante do Palmeiras, o douradense Keirrison Carneiro. E Yarley foi inspirado no também jogador Iarley, autor do gol histórico que garantiu a vitória do Paysandu por 1x0 contra o Boca Juniors na final da Libertadores em 2003.

E como num jogo de futebol, em que não dá pra saber se o time vai vencer ou perder até ir lá e jogar, a mãe admite que começaram a ação com um certo receio, mas decidiram fazer um teste “vamos colocar e ver o que acontece”, e o resultado foi um gol de placa. Hoje eles repõem o estoque de roupas várias vezes durante o dia.

“Os meninos que fazem tudo: levantam cedo, organizam as roupas, separam as de adulto e as de criança, montam o varal ali no portão. E ficam atentos, se ameaça chover eles já correm e recolhem tudo. Se volta o sol, devolve outra vez, e assim vai”.

Dona Dorcelina encontrou até vestido. (Foto: Gustavo Maia)
Dona Dorcelina encontrou até vestido. (Foto: Gustavo Maia)

No pouco tempo que ficamos conversando na varanda da casa, várias pessoas que passavam pela calçada pararam para levar alguma coisa. Algumas receosas, talvez ainda sem acreditar muito no cartaz que diz que “quem precisa leva… quem não precisa deixa!”.

Uma mãe passou com o filho à procura de um calçado: “ele tá descalço, tá sem sapato”. Encontrou dois pares de tênis que serviram no garotinho e foi embora agradecida. A criança não fazia questão de esconder o contentamento e já voltou para casa usando o novo tênis.

Dona Dorcelina, de 61 anos, que trabalha consertando roupas, também veio à procura de um sapato para o netinho e considera a iniciativa uma ótima ideia: “tem muita gente precisando, enquanto tem muitos com o guarda roupa cheio e não usa. Se todo mundo fizesse igual eles, doasse, o mundo com certeza seria outro”.

A cada pessoa ajudada dá pra ver a satisfação no rosto dos meninos que deixam de lado a timidez e cumprimentam a todos que param e até fazem propaganda dos itens, sugerindo a peça de acordo com a idade e o sexo de quem chega buscando uma roupa ou calçado.

Keirrison é o responsável pela organização dos sapatos. (Foto: Gustavo Maia)
Keirrison é o responsável pela organização dos sapatos. (Foto: Gustavo Maia)

Yarley revela que já esteve do outro lado da história - precisou de roupa e recebeu doações. “Hoje eu que dou, porque sei que tem gente precisando”, conta ele, que apesar da pouca idade já consegue perceber que o amor ao próximo é a receita para tornar o mundo um lugar melhor.

O caçula, Keirrison, avalia que a ideia está dando certo, e é ele quem organiza os sapatos “primeiro os de criança, depois os de adulto. Aí vêm os baixinhos e depois os de salto alto”, explica ele enquanto coloca tudo em ordem na calçada.

E esse é o desejo de Adriana - que as pessoas se sensibilizem e se comprometam mais com a própria comunidade. E sobre as cenas do dia a dia, que muitas vezes fingimos não ver, ela afirma que todo mundo é capaz de mudar, nem que seja um pouquinho, o mundo onde vive. “Você vê o que você quer ver. Mas às vezes as pessoas fingem não ver, porque é mais fácil ”, critica.

Ela, que se recupera de uma inflamação de meninge, faz questão de registrar que o benefício da doação não é apenas para quem recebe, mas também para quem doa: “nesses quatro dias, já estou até me sentindo melhor. Tá fazendo muito bem pra minha saúde”, e garante que, se quem tem sobrando continuar doando, o varal vai continuar.

Time da solidariedade: Adriana, Keirrison e Yarley entram em campo contra o apego. (Foto: Gustavo Maia)
Time da solidariedade: Adriana, Keirrison e Yarley entram em campo contra o apego. (Foto: Gustavo Maia)
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