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A Crise do Incra

Gerson Teixeira | 25/04/2011 11:12

1. Considerações Introdutórias

No dia 05 p.p, o novo Presidente do Incra, Celso Lacerda, foi à Câmara dos Deputados para participar de reunião com os parlamentares que integram o Núcleo Agrário da bancada do PT naquela Casa legislativa.

Não foi uma mera visita de cortesia como de praxe em ocasiões dessa natureza. Antes, foi uma ação pragmática em busca de ajuda ante os desafios superlativos colocados para a sua gestão. Por certo, solidariedade dos membros do Núcleo Agrário não lhe faltará. Contudo, o engajamento desse pequeno grupo de parlamentares que ainda discute reforma agrária no Congresso não será suficiente para resgatar o programa. Penso que este deverá permanecer nas franjas da agenda política do país.

A correlação de forças e o crescente peso do agronegócio na balança comercial brasileira, turbinado pelo ciclo atual de elevação da demanda e dos preços das commodities agrícolas, não permitem imaginar qualquer up grade político ao programa de reforma agrária no momento histórico presente. De outra parte, com as lutas sociais pela reforma agrária em declive, deixa de existir o único fenômeno capaz de contrarrestar a tendência considerada.

Nesse cenário, provavelmente o novo Presidente do Incra se dará por “bem sucedido” caso consiga as condições objetivas para reduzir o gigantesco e diversificado problema operacional acumulado pelo órgão. O agravamento desse passivo faz parte do legado de oito anos de “militantes da DS do RS, estranhos ao tema”, à frente da pasta setorial. Neste período, o Incra foi imobilizado, fragilizado, canibalizado e descaracterizado jurídica e politicamente.

Ainda que de forma inconsciente, na reunião com o Núcleo Agrário, o Presidente do Incra sinalizou que a sua ambição é mesmo a de apenas tentar arrumar alguns cômodos da casa. No Encontro, havia a expectativa de uma mensagem, pelo menos tangenciando sobre aspectos programáticos para a reforma agrária nos próximos quatro anos. No entanto, o dirigente ateve-se, exclusivamente, ao relato do atual quadro da instituição que inviabiliza o cumprimento da sua missão.

2. As Causas da Crise

A crise do Incra, que se expressa no acúmulo de anomalias e déficits diversos e profundos¹, é uma crise essencialmente política agravada por problemas de gestão. É política porque o fundamento da “reforma agrária” no Brasil desde sempre tem sido a proposta de responder precariamente às lutas dos trabalhadores pelo acesso à terra, de forma consentida (e lucrativa) pelo latifúndio, preponderantemente fora das áreas consolidadas do agronegócio, e sem a alteração da estrutura de posse e uso da terra.

2.1. Latifúndio: O principal beneficiário da reforma agrária

Vale frisar que especificamente o processo de obtenção de terras sempre foi circundado de salvaguardas institucionais em benefício do latifúndio de modo a preservá-lo de tensões políticas. Para tanto, foram instituídas legislações altamente permissivas e rentáveis para esses setores nas operações de desapropriação, por exemplo. Nestas, ademais, as brechas e falhas deliberadas deram margens a jurisprudências que consolidaram o “negócio da China” para os grandes proprietários no qual foi transformado o programa de reforma agrária.

Além da facilidade e êxito certo na contestação judicial dos preços da terra ofertados pela União, a majoração decorrente nos valores das indenizações tem sido inflada de forma exponencial com a aplicação de juros compensatórios e moratórios², afora honorários advocatícios, etc. Ficou consagrado, assim, processo de transferência, para o latifúndio, de vultosos valores do orçamento do Incra, em prejuízo das dotações para o acesso à terra e ao desenvolvimento dos assentamentos.

A análise da execução orçamentária dessa autarquia revela que, a cada ano, são reduzidos os gastos com obtenção de terras e ampliadas as dotações despendidas com o cumprimento de sentenças judiciais que incluem, preponderantemente, os precatórios relacionados às contestações do valor da terra.

Tomando-se os últimos quatro anos como amostragem desse processo, o quadro abaixo mostra a evolução comparativa dos pagamentos com precatórios, com os pagamentos pela obtenção de terras:

 A Crise do Incra

Do quadro acima, tem-se que os dispêndios com precatórios, relativamente aos gastos com a obtenção de terras para o programa de reforma agrária, passaram de 6.4% em 2007, para 55.5% em 2010.

A legislação que ampara essa sangria dos recursos do Incra foi sacramentada no governo FHC pela MP nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001. Tal instrumento também determinou o encurtamento dos prazos de resgate dos TDAs e ampliou as taxas de rentabilidade desses títulos. Em ambos os casos, nos processos de compra de terra que marcaram a inserção do programa de reforma agrária no projeto neoliberal.

Em suma, no conjunto, tais expedientes implicaram em fortes e permanentes pressões dos custos do programa de reforma agrária, sobre o Tesouro.

Outro fator que desvia indevidamente recursos desse programa tem sido o pagamento pela desapropriação de terras que pertencem à União, a exemplo daquelas localizadas nas faixas de fronteira que foram ilegitimamente transferidos para o domínio privado por governos estaduais.

Ante os estragos causados pelos ralos acima, na gestão passada o MDA elaborou e publicou estudo técnico de qualidade duvidosa para denunciar o “custo exorbitante” do programa de reforma agrária. Simplesmente o estudo, além de jogar contra a reforma agrária, não apontou esses ‘vazamentos’ como as fatores que encarecem o programa em benefício dos grandes proprietários (papagaio come o milho; periquito leva a fama)³.

Em síntese, as justas e legítimas lutas dos trabalhadores por reforma agrária forçam a criação de assentamentos. No entanto, graças ao contexto de anomalias institucionais, esses assentamentos são transformados em aglomerados de famílias sob precárias condições de acesso a direitos, serviços, fomento e infraestrutura. Enquanto isso os latifundiários enchem os bolsos.

Nesses termos, há que se refletir sobre as lutas por orçamentos mais robustos para o Incra, pois, com a legislação e jurisprudências vigentes, isso significa mais assentados lumpenizados, e mais latifundiário endinheirado.

Na reunião mencionada o Presidente do Incra comunicou que o órgão estaria encaminhando, proximamente, para apreciação interna ao governo, proposta de legislação para estancar essas sangrias de recursos públicos. Sem dúvidas foi uma notícia alvissareira, restando a dúvida: por que só agora a iniciativa, já que o atual Presidente do órgão integrava a diretoria anterior e certamente era sabedor dos fatos que ora denuncia?

Sobre o tema, o Deputado Beto Faro apresentou Projeto de Lei, que tramita na Câmara sob o fogo cerrado da Bancada Ruralista, que estabelece como valor da indenização das terras desapropriadas, o mesmo valor declarado das terras, pelos próprios proprietários, para efeitos do ITR. Eis aí um instrumento que poderia interessar ao Incra.

2.2. Recursos Humanos

Outro grande problema enfrentado pelo Incra, na atualidade, conforme ressaltou o seu Presidente, é o enorme déficit quantitativo e qualitativo dos servidores do órgão. Adicione-se, a apatia profissional desses servidores por conta dos baixos níveis salariais, fortes assimetrias internas remuneratórias entre categorias correlatas, precariedade das condições de trabalho, inexistência de políticas de reciclagem e capacitação, além de outros pontos que conflitam com uma política de valorização dos servidores.

Por suposto, esse é mais um indicador da origem política da crise do Incra. Para áreas tidas como prioritárias da administração têm sido criados planos de carreiras com elevados padrões remuneratórios. Os órgãos da reforma agrária estão foram dessa lista.

Um servidor de nível médio do MAPA, órgão do poderoso agronegócio, tem remuneração superior ao de um agrônomo do Incra. Nada contra a justa remuneração dos servidores do MAPA, mas até pelo princípio da isonomia, aos técnicos do Incra caberia salários compatíveis com os dos fiscais agropecuários.

Durante os dois governos do Presidente Lula, foram autorizados e realizados dois concursos públicos para técnicos do Incra. Contudo, em razão do baixo salário médio das carreiras correspondentes, tem ocorrido elevada taxa de evasão desses servidores que permanecem no Incra até a aprovação em outro concurso.

O fato é que a que a não renovação dos quadros do Incra, nos últimos vinte anos, resultou que mais de 70% do seu contingente atual de 5.602 servidores têm idade acima de 50 anos. Afora isso, conforme revela o diagnóstico realizado por força da Portaria MP/SRH/Nº 1.465, de 2006, houve o significativo processo de definhamento relativo dos quadros da autarquia. Em 1985, havia um coeficiente servidor/família assentada da ordem 0,07. Em 2006 essa taxa estava reduzida em quase dez vezes alcançando 0,006.

São evidentes, ainda, as insuficiências qualitativas do corpo de servidores da instituição para os níveis de exigência técnica das suas múltiplas e complexas atividades. O mesmo estudo informa que 62% da força de trabalho do Incra é constituída de servidores de nível técnico/intermediário.

Não bastasse o quadro acima, o Programa Terra Legal sugou estrutura e cargos; recursos e cerca de 250 servidores da autarquia, destacados para cumprir essa tarefa sob o comendo direto do MDA. Com essa canibalização restaram irremediavelmente comprometidas as atividades estratégicas de gerenciamento da estrutura fundiária do país. Diga-se que esse processo foi justificado como requisito para a eficiência e celeridade do processo de regularização fundiária na Amazônia. Detalhe: apenas 1% das metas desse programa foram efetivadas!

Portanto, configura-se quadro altamente preocupante para a instituição e, por via de conseqüência, para as possibilidades de implementação, em níveis aceitáveis, do programa de reforma agrária.

2.3. Pluriatividade versus subestrutura e gestão fragmentada

A natureza multifuncional do Incra, conceitualmente correta à medida que intenta concentrar num único órgão o amplo leque de ações demandadas por um programa de incidência transversal e sistêmica como a reforma agrária, tem se convertido, na prática, em fonte adicional da crise da autarquia.

Na realidade, insisto, não é a concepção que está errada. O problema é: como um órgão desaparelhado, conforme exposto antes, poderia estar habilitado a exercer, com eficiência e presteza um amplo leque de atividades incluindo as atividades de acesso e regularização da terra, desenvolvimento dos assentamentos, infraestrutura, saúde, educação, assistência técnica, assistência a populações quilombolas, indígenas, comunidades tradicionais?????

A propósito, e especificamente, na “ausência” de quem de direito, o INCRA assumiu, recentemente, encargos não previstos nas atividades de desintrusão de terras indígenas, e com o Programa Quilombola, em ambos os casos, competindo com as já fragilizadas dotações orçamentárias do órgão para as suas atividades originárias.

Por fim, mas não por último, não se pode deixar de apontar os graves problemas de gestão, em grande parte, derivados da transformação do órgão em balcão de disputas políticas nos estados.

Não raro, o núcleo dirigente do Incra não tem plena governabilidade sobre as esferas da capilaridade do órgão por conta dos procedimentos consagrados na definição dos administradores regionais. Isso levou a uma gestão fragmentada, por vezes, atuando à revelia das diretivas da administração central.

3. Conclusão

A recuperação do Incra, incluindo a revalorização do seu quadro de funcionários depende do grau de importância que por ventura venha a ser atribuído ao processo de reforma agrária. Claro que as mudanças políticas são sempre possíveis. No entanto, pela avaliação sumária antes posta, não vislumbro inflexões substanciais nesse tema. Os parlamentares do Núcleo Agrário estão cumprindo o seu papel. Expediram ofício solicitando audiência com a Presidenta Dilma, também subscrito pelo Líder da Bancada do PT na Câmara dos Deputados para tentarem mudanças nesse quadro. Enquanto isso, resta ao Presidente do Incra, trabalho, coragem para qualificar e racionalizar a gestão, e investir nas articulações com as entidades populares e demais setores que ainda defendem a reforma agrária como projeto estratégico para o futuro do Brasil.

(1) Como exemplo, o órgão se depara com compromissos financeiros, não honrados, equivalentes ao valor próximo a 1 orçamento da autarquia. Na posição de 03.02.2011 (SIAFI Gerencial), os restos a pagar do Incra somavam valor próximo a R$ 2.2 bilhões (exclusive precatórios), dos quais, R$ 1.4 bi somente com os créditos de instalação, o que permite estimar a magnitude dos passivos nos assentamentos.

(2) Com a Emenda Constitucional nº 62, de 2009, foi extinta a incidência dos juros compensatórios nos processos de contestações judiciais nas três esferas de governo. Até então regido pela MP nº 2.183-56, de 24de agosto de 2001, essa verba nos processos de reforma agrária incidia mediante a taxa de até 6% aa sobre a diferença entre o preço definido judicialmente e o ofertado pelo Governo, desde a data da imissão do Incra até o efetivo pagamento. Com a EC, incluída, neste particular, no parágrafo 12, do Art. 100 da CF os juros compensatórios, especificamente, forma substituídos pela remuneração da caderneta de poupança. Detalhes a ser serem estudados e analisados: 1) houve o retorno da indexação desse processo; 2) em 2010, a variação da poupança foi superior aos 6%; 3) o texto da EC não explicita, ao contrário do texto da MP, que a verba se aplica apenas à diferença entre os preços da terra. Na seqüência estaremos procedendo a uma avaliação mais consubstanciada sobre essa mudança.

(3) A propósito, a legislação em comento, ainda mantida, também consagrou os dispositivos que criminalizam as entidades e as lideranças de trabalhadores que lutam pela reforma agrária, embora, nos governos Lula, tais dispositivos jamais tenham sido aplicados.

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