ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
JUNHO, TERÇA  17    CAMPO GRANDE 24º

Artigos

A demarcação definitiva de competência entre Câmaras Municipais e TC

Por Eliton Carlos Ramos Gomes (*) | 17/06/2025 13:45

Poucos assuntos geraram tanta comoção e debate no Direito Público brasileiro nas últimas décadas quanto a questão da competência para julgar as contas do prefeito municipal. Durante décadas, doutrina, tribunais e até órgãos de controle questionaram onde estaria a linha de demarcação entre as atividades desempenhadas pelas Câmaras Municipais e os Tribunais de Contas em relação à verificação das contas dos gestores públicos.

 "O debate eclodiu em interpretações diversas e até antagônicas, e alcançou o marco do Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 982, que estabeleceu de forma clara e inequívoca as áreas de competência de cada uma dessas entidades no que diz respeito ao controle sobre os gastos dos municípios."

A gênese dessa discussão encontra-se, na verdade, no próprio nascimento do modelo de controle externo adotado pela Constituição Federal de 1988, quando as Câmaras Municipais foram atribuídas a competência para julgar as contas do prefeito (art. 31, §2º), “com o auxílio dos Tribunais de Contas”. No entanto, tal auxílio, concorda-se, ao compor um julgamento prévio, sempre provocou inquietação, até onde o auxílio era vinculante, e o que era, e o que tentar o Legislativo local.

No entanto, a doutrina desde então fixou uma diferenciação básica entre os dois conceitos, que, em termos práticos, resultam em consequências jurídicas completamente diferentes: contas de governo e contas de gestão. As contas de governo fornecem um indicador do desempenho macro da administração pública. Sua tarefa é determinar se o prefeito cumpriu suas obrigações constitucionais e legais na supervisão do uso geral dos recursos públicos — se as metas fiscais gerais foram cumpridas, se os limites constitucionais de gastos com saúde e educação foram respeitados e se os planos de governo foram executados. Trata-se, portanto, de uma decisão política que recai exclusivamente na competência da Câmara Municipal, sendo apenas a opinião do Tribunal de Contas de natureza consultiva.

Por outro lado, as contas de gestão dizem respeito à operação imediata dos meios financeiros, contratos e atos administrativos financeiros. Aqui, onde o prefeito é o gestor das despesas, ele não é de forma alguma diferente de qualquer outro gestor público e é responsável perante o público pelo que faz como administrador. Essas contas não são revisadas pela Câmara Municipal, mas pelos critérios técnicos dos Tribunais de Contas, que têm o poder de aplicar multas, determinar restituições e débitos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal é clara, firme e, acima de tudo, pedagógica. O STF reconheceu que os Tribunais de Contas têm jurisdição completa para julgar as contas de gestão, mesmo que praticadas pelos prefeitos dos municípios na função de gestores das despesas. O erro que tantas vezes foi castigado em decisões isoladas, que resultou no envio para o Conselho Municipal do que, por sua própria natureza técnica, nunca deveria ter se tornado uma questão de discussão política. Afinal, o controle da legalidade e conformidade contábil dos atos de gestão requer análise técnica, auditoria, inspeção de documentos e emissão de pareceres especializados — que não são características do Legislativo Local, mas dos Tribunais de Contas.

Ao julgar a ADPF (192) 982, o STF deixou claro que as sanções impostas pelos Tribunais de Contas em relação às contas de gestão, independentemente de ratificação pela câmara municipal, não estão fora da lei. Elas são devidamente atribuídas e exequíveis, inclusive patrimonialmente. Registra-se que a competência da Câmara Municipal foi mantida para julgar as contas de governo, não poderia ser de outra forma, e a rejeição delas pode até resultar em inelegibilidade nos termos do art. 1º, I, da Lei Complementar nº 64/90 (Lei da Ficha Limpa).

Esta decisão não é uma ruptura, estamos consolidando um modelo de fiscalização que fortalece a República, a transparência, a moralidade pública. Especialmente nas pequenas cidades brasileiras, nas quais o prefeito costuma confundir a chefia do Executivo com as atividades administrativas do Executivo, não há dúvida após a decisão do STF: os atos de gestão financeira devem ser julgados diretamente pelos Tribunais de Contas. A partir de agora, não há mais a possibilidade de haver interpretações divergentes que, especialmente no passado, constituíram uma espécie de resgate político para prefeitos que, mesmo condenados pelos Tribunais de Contas, se refugiavam em julgamentos tolerantes passados pela câmara ou com interesses políticos locais.

Para os gestores públicos, particularmente gestores de despesas, esta decisão consolida a obrigação de atuar em estrita conformidade com as diretrizes de legalidade contábil e orçamentária, com princípios de probidade administrativa e a devida execução dos recursos públicos.

É do interesse dos cidadãos e dos órgãos de controle social (associações civis, conselhos e imprensa local) que haja clareza sobre quem julga o quê, pois é nisso que encontram sua alavancagem. Os cidadãos aprendem que, sim, precisam acompanhar a votação das contas de governo no Legislativo Municipal, mas também os julgamentos dos Tribunais de Contas, que produzem eficácia executiva imediata sobre as contas de gestão.

A decisão na ADPF 982 pelo Supremo Tribunal Federal não só pacifica uma controvérsia de longa data, mas também retoma a relevância do princípio da responsabilidade fiscal, eficiência, moralidade e legalidade. Portanto, a governança pública é reforçada, o controle externo é qualificado e um mecanismo mais eficaz de responsabilização dos agentes públicos é proporcionado à sociedade brasileira, começando por aqueles que são brevemente capacitados para gerir o dinheiro do povo.

(*) Eliton Carlos Ramos Gomes, jurista, graduado em direito público, conselheiro da OAB/MS e ex-presidente da Comissão dos Advogados Publicistas.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

Nos siga no Google Notícias