"A Mulher da Casa Abandonada": a verdade sobre a escravidão contemporânea
A mansão em ruínas em um dos bairros mais nobres de São Paulo é muito mais do que um cenário de curiosidade mórbida. Os muros decadentes da casa em Higienópolis, que abrigam Margarida Bonetti, são a metáfora perfeita para uma ferida social que o Brasil insiste em esconder sob o tapete: o trabalho doméstico análogo à escravidão. A série documental "A Mulher da Casa Abandonada", disponível no streaming, ao escancarar essa história, nos obriga a olhar para além do bizarro e a confrontar uma realidade que é, ao mesmo tempo, medieval e assustadoramente contemporânea.
O documentário, que aprofunda a investigação do aclamado podcast do jornalista Chico Felitti, não deve ser consumido como mero entretenimento sobre uma figura excêntrica. Ele é um convite urgente a um debate nacional sobre as estruturas de poder, classe e raça que permitem que a escravidão moderna floresça dentro de lares brasileiros. A história de Margarida Bonetti, herdeira de uma família da elite paulistana, acusada de manter sua empregada, Hilda Rosa dos Santos, em condições desumanas por duas décadas nos Estados Unidos, é emblemática. Enquanto seu marido foi julgado e condenado, Margarida fugiu, encontrando no Brasil um refúgio para a impunidade, onde o crime prescreveu e a justiça nunca a alcançou.
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O caso de Margarida, no entanto, não é um ponto fora da curva. É a chaga mais visível de uma doença crônica. A história se repete com uma crueldade assustadora em diferentes cantos do país, quase sempre vitimando mulheres, majoritariamente negras. Lembremos de Madalena Gordiano, em Minas Gerais, resgatada após 38 anos de servidão. Ou da senhora de 84 anos, no Rio de Janeiro, que trabalhou por 72 anos sem salário, liberdade ou direitos para três gerações da mesma família.
Em cada caso, há um padrão devastador: vidas inteiras roubadas, sem acesso à educação, sem direito a construir a própria família, sem a dignidade de um salário ou de um dia de descanso. São existências apagadas em troca de um teto e restos de comida, sob o pretexto perverso de que são "quase da família". Essa expressão, aliás, revela o cerne do problema. O Brasil reluta em acertar as contas com seu passado escravocrata e perpetua uma mentalidade que desvaloriza o trabalho doméstico, tratando-o como uma forma de "ajuda" ou favor, e não como uma profissão digna de direitos.
Embora tenhamos leis, a fiscalização é complexa e as denúncias, muitas vezes, só ganham força quando um caso escandaloso como o de Margarida explode na mídia. Vale lembrar que o sucesso do podcast levou a um aumento de 123% nas denúncias em todo o país! Essa é a prova de nossa indiferença... A invisibilidade é a maior aliada dos agressores.
Portanto, ao assistir à série, que a nossa indignação não se limite à figura de Margarida Bonetti. Que ela se transforme em um questionamento profundo sobre a sociedade que construímos. A verdadeira casa abandonada não é apenas a de Higienópolis, mas um Brasil que abandona seus filhos mais vulneráveis à própria sorte, fechando os olhos para as correntes invisíveis que ainda aprisionam tantas pessoas.
A pergunta que ecoa em nossas mentes ao final da pitoresca, mas necessária, série — "Quantas ainda estão nessa situação, Brasil afora, e a gente não sabe?" — não é apenas retórica. É um chamado à ação, à alteridade, à Justiça. É uma responsabilidade que recai sobre cada um de nós.
(*) André Naves, Defensor Público Federal e especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social
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