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A tragédia de Goiânia e o novo paradigma da violência?

Ana Paula Silva e Milton Lahuerta | 27/10/2017 07:27

Apesar de a sociedade brasileira conviver cotidianamente com cenas de violência explícita, um choque e uma sensação forte de confusão nos acomete quando nos deparamos com uma tragédia como a de Goiânia. Os brasileiros, muitas vezes, parecem anestesiados diante do terror das disputas entre as facções do tráfico, do embate quase cotidiano entre a polícia e o crime organizado, dos roubos e latrocínios, tamanha a sua recorrência. Ainda que cientificamente seja complexo explicar as causas da violência criminal crescente, ela tem um viés instrumental bastante claro e perceptível a qualquer pessoa minimamente informada: visa dinheiro, status, poder. O paradoxo é que do mesmo modo que cresce a percepção de que o Brasil é um país muito desigual, marcado pela violência e por altos índices de homicídio, mantem-se a ideia de que somos um povo harmônico e sociável. Fica difícil, portanto, compreender a ocorrência desse tipo de violência, muito comum nos Estados Unidos, chamada por lá de rampage shootings. Afinal, pela matriz ibérica, estaríamos muito distantes dos povos de origem puritana e marcadamente individualista como os norte-americanos. Justamente por isso, para além da consternação, torna-se premente entender o que motivou uma tragédia como esta. À primeira vista, pode-se atribuí-la a uma espécie de mimetismo, explicável pela presença de algo comum a esse tipo de episódio: uma situação de bullying, com um jovem emocionalmente descontrolado e com fácil acesso às armas. No entanto, talvez seja necessário ir um pouco além dessa dimensão e colocar na pauta as intensas transformações que, nas últimas décadas, afetaram de modo irreversível todas as sociedades contemporâneas, provocando profundas alterações nas formas de socialização e gerando novas formas de violência, dentre elas a violência banal, de ódio e também urbana.

O professor francês da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Michel WIeviorka, defende que para pensar a violência atualmente é necessário um novo paradigma, ou seja, é fundamental uma abordagem original que dê ênfase às novas formas de subjetividade e aos processos de perda de sentido da vida. Obviamente, ele está focado nos problemas de origem europeia, em especial na violência cometida por jovens europeus, relacionada ao racismo e ao terrorismo. No entanto, a despeito das enormes diferenças sociais, cabe perguntar: o que há em comum entre jovens europeus que se filiam ao Estado Islâmico, atiradores de rampage shootings nos Estados Unidos e o jovem atirador em Goiânia? Todos eles vivem as consequências de um processo global de dilaceramento da cidadania devido ao crescimento de uma ideologia privatista e instrumental que gera impasses para a construção de conflitos sociais que possam ser institucionalizados ou negociados através de uma “ação política concertada”. Alguns sociólogos destacam, inclusive, que se está diante de uma grave crise de perspectivas, justamente por não haver mais instâncias coletivas que permitam a construção de um repertório de valores essenciais à política (e à vida civilizada), como a negociação, o diálogo e a concertação de interesses. Esse movimento social modifica profundamente os processos de socialização, abrindo espaço para valores extremos, absolutos, que têm como fim apenas a ruptura.

Nesse sentido, a própria política é radicalmente transformada, mas também as diversas manifestações sociais, inclusive aquelas relacionadas à violência. Um olhar para a socialização, para as subjetividades e para a política, com o intuito de investigar a violência, pode parecer difícil em um país onde o crime organizado mostra-se cada vez mais poderoso, como revelam cotidianamente os noticiários dos jornais. O fato que é essa transformação social atinge a todos, com consequências não apenas sobre a criminalidade comum, mas também sobre os crimes de ódio, a violência banal e o surgimento de fenômenos como a tragédia em Goiânia. Infelizmente há uma precariedade muito grande na produção de dados por parte dos órgãos públicos para detectar as motivações dos homicídios, seja porque não existem muitas investigações eficientes sobre eles, seja porque não há empenho em classificar e sistematizar, no âmbito dos agentes públicos, as características dos crimes cometidos no Brasil. Uma maior eficiência do poder público certamente ajudaria a verificar de maneira mais rigorosa a relevância e as consequências desse processo de transformação da sociabilidade; por outro lado, a precariedade de sua ação contrasta com a alta qualidade dos estudos sociológicos brasileiros acerca da violência. É notável que esses estudos, ainda que reconhecidos internacionalmente, em geral são subutilizados pelos órgãos públicos. Há, sem dúvida, pesquisadores (poucos, é verdade) que conseguem estabelecer um diálogo mais profícuo com órgãos de governo graças à boa vontade de alguns políticos, mas isso não pode ser caracterizado como uma política de Estado.

Se é possível criticar os estudos acadêmicos feitos nos EUA (sem dúvida, o país “campeão” dos rampage shootings) pelo excessivo psicologismo e pelo cientificismo de suas abordagens sobre o fenômeno, assim como o excesso de vigilância e de controle vigentes em sua sociedade, é importante destacar que em certos aspectos eles podem nos ensinar muito. O FBI, por exemplo, possui um banco de dados relevante sobre o tema, com acesso público aberto. Do mesmo modo, desde 1990, há uma lei, assinada pelo ex-presidente George Bush, que garante a produção de estatísticas sobre crimes de ódio, incluindo aqueles que têm a orientação sexual como motivação. Há que se lembrar também do recrutamento de intelectuais pelo FBI e pela CIA para auxiliar na investigação de crimes e também na compreensão mais ampla e profunda sobre as raízes sociais e psicológicas de diversos tipos de violência.

Dizer isso não significa negligenciar que nossos problemas têm cores e definições muito próprias. Mas apenas destacar que suas motivações também estão determinadas por processos sociais mais abrangentes que dizem respeito à emergência de um novo padrão produtivo e tecnológico que abala as instituições públicas, individualiza de forma perversa e joga no desamparo moral amplos setores da sociedade. A falta de clareza conceitual (e também de vontade política) no tratamento dos problemas relativos à violência tem dado margem cada vez mais para o crescimento da lógica punitiva que engendra novas formas de violência e para a adesão ao simplismo das soluções autoritárias e vingativas. O discurso fácil e moralista tem conquistado mais adeptos à medida que a violência se intensifica. Entender as novas formas de violência, identificar suas tendências e combatê-las com eficiência é um trabalho que só pode realizar através do amplo debate público e por meio da ciência e da educação. Nesse sentido, o diálogo entre as Universidades e o Estado torna-se urgente e fundamental para que seja garantida a necessária sistematicidade e continuidade de ações de segurança pública consequentes, que respeitem os limites da lei e contribuam para o fortalecimento da democracia. Simplesmente reduzir esses episódios a distúrbios psíquicos e/ou a meras manifestações de mimetismo do que ocorre em sociedades desenvolvidas não nos levará muito longe. Mais do que nunca, para combater a solidão moral que acomete as sociedades contemporâneas, é preciso resgatar o sentido da política democrática e o papel da formação civil na subjetividade das novas gerações.

(*) Ana Paula Silva é Pesquisadora do Laboratório de Política e Governo da UNESP. e-mail: anapaulasilva4@yahoo.com.br
(*) Milton Lahuerta é Coordenador do Laboratório de Política e Governo da UNESP. e-mail: lahuerta@fclar.unesp.br

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