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A tragédia do Realengo

Por Dioclécio Campos Júnior (*) | 09/04/2011 07:04

A chacina de crianças e adolescentes em escola no Rio de Janeiro é chocante. As circunstâncias em que se deu trazem à tona os traços do horror que perturbam a mente humana. Inauguram modalidade de violência ainda não descrita entre nós. Mostram que nosso potencial criativo de tragédia está longe de ser esgotado.

A sociedade brasileira degrada-se a olhos vistos. Está gravemente doente, embora se recuse a reconhecê-lo. O brutal assassinato de escolares é incompatível com o mínimo de civilização. É vergonha para a espécie Homo sapiens. Expõe não as vísceras anatômicas das vítimas indefesas, mas as entranhas deterioradas do modelo social que escolhemos para elas.

Crianças e adolescentes valem cada vez menos no Brasil. Não têm mais o direito de nascer e crescer no ninho original da infância, o recanto familiar seguro, afetuoso, saudável, estimulador, criativo concebido naturalmente para o livre exercício do brincar, pressuposto único para o encantamento das pessoas em período de riqueza cognitiva incomparável. Sobrevivem a riscos de morte violenta em escala crescente.

Convivem com usos e abusos de toda ordem que abalam o cotidiano das cidades e atingem os mais vulneráveis. Infanticídio, estupro, prostituição, trabalho infantil, drogadição integram o cenário preparado para acolher as novas gerações. Só se fala em campanhas de enfrentamento, combate, redução de idade penal. Prefere-se entender essa brutal negação de direito como caso de polícia. Não se aceita identificar a violência como sintoma da enfermidade social que se propaga e requer prevenção urgente, posto que o tratamento que lhe vem sendo dado revela-se caro e ineficaz.

A matança de hoje comove muito mais pela forma do que pelo conteúdo. A escola, principalmente a pública, tornou-se local inseguro, pouco atraente, agressivo. Episódios isolados de morte violenta nesse recinto ocorrem com relativa freqüência. A imprensa os relata quase diariamente. Emocionam pouco porque matam menos crianças de cada vez. Uso de arma de fogo tornou-se banalidade no Brasil. A sociedade aprovou-o em plebiscito. Os resultados contundentes aí estão.

Os dados são assustadores. Segundo pesquisa feita pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, mais de 5.000 jovens de 12 a 19 anos de idade são vítimas de homicídio todo ano. Uma cifra alarmante que circula quase silenciosa. Corresponde a 15 homicídios diários. Como não são cometidos contra grupos de crianças e adolescentes reunidos no mesmo local, são razoavelmente tolerados pela sociedade, quando não totalmente ignorados.

Para que se tenha a real dimensão do impacto produzido pelo homicídio nessa faixa etária, nada melhor que o indicador “anos potenciais de vida perdidos”. Se a esperança de vida ao nascer é de 70 anos, quem morre entre 12 e 19 anos deixará de viver 55. Como são eliminados anualmente 5.000 por ano, estamos perdendo 275.000 anos potencias de vida humana produtiva na sociedade brasileira a cada ano que passa.

Nada fazemos para evitar tamanho desastre. Choramos a perda das crianças executadas hoje. A comoção atesta o sofrimento que afeta a nacionalidade em momentos tão desalentadores. Ainda temos sensibilidade. Mas, dada a expansão da violência em nosso meio, a produção de lágrimas pode se tornar insuficiente para chorarmos a crônica de todas as tragédias anunciadas no país.

(*) Dioclécio Campos Júnior é professor titular da Universidade de Brasília e secretário da Criança e do Adolescente do DF. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro e mestrado e doutorado em Pediatria, ambos pela Universite Libre de Bruxelles.

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