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Ao extraditar, Estado abre mão do direito de punir

Por Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins* | 29/11/2011 07:05

O direito de punir, em termos penais, pertence ao Estado. Historicamente tido como fundamento majoritário do Direito Penal[[i]], o direito de punir decorreu da própria evolução do Estado, tendo como ponto de partida a Revolução Francesa, onde o Es­tado passou a sofrer limitações por parte da sociedade, principalmente na seara jurí­dica, como forma de coibir os abusos praticados pela monarquia estabelecida à época. Neste período de expiação e transição, o Direito Penal passou então a ser considerado como instrumento de defesa dos valores inerentes à sociedade, protegendo-a de ata­ques graves à seus interesses, de forma coordenada e limitada por leis específicas, codifi­cadas, que regiam o comportamento mínimo exigido para a época.

Hoje, se tem que o direito de punir do Estado encontra limitações na preserva­ção da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, havendo por imprescin­dível o respeito às garantias fundamentais para a atuação estatal no exercício do seu direito de punir. Assim se estabelece porque, como assevera Marco Antonio Mar­ques da Silva[[ii]]: “dignidade da pessoa humana é o reconhecimento constitucional dos limites da esfera de intervenção do Estado na vida do cidadão e por esta razão os direitos fundamentais, no âmbito do poder de punir do Estado, dela decorrem, determi­nando que a função judicial seja um fator relevante para reconhecer-se o alcance real destes direitos. Desta forma, a concretização e a eficácia jurídica de um direito ocorrem com a manifestação dos órgãos do poder judiciário que lhe dão eficácia.”

O direito de punir do Estado então passou a ser entendido como instrumento de preservação do Estado Democrático de Direito, na medida em que se passou a exigir a preservação do interesse comum, ou seja, do interesse social, contudo, resguardando as garantias e liberdades asseguradas pelas garantias fundamentais aos indivíduo.

Entendendo-se por limites do direito de punir, temos que são limites impostos pela própria lei como forma de controle e prevenção do arbítrio, preconizando, primordial­mente a Constituição Federal que “nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário”(ex vi artigo 5º, inciso XXXV da CF/88). Passa-se então a preconizar limitações de ordem constitucional e de direito material para o Direito de punir imbuído ao Estado.

No entanto, muito embora o Estado seja o titular do Direito de punir, muito co­mum o fato de que muitos indivíduos, após a prática de condutas delitivas ou de infrin­gir a Lei Penal de um determinado Estado, se evada para fugir da aplicação da lei ou do processo penal, deparando-se com uma pseudo-segurança ao adentrar na circunscri­ção da soberania de um determinado Estado. Até bem pouco tempo atrás, adentrar às dependências de um determinado país poderia significar a impunidade de um criminoso.

Mas diante desta real possibilidade do indivíduo adentrar outro Estado soberano, e à guisa da necessidade de não se banalizar o território, homiziando estrangei­ros, bem como de se preservar o bom relacionamento entre Estados sobera­nos e a reciprocidade de condutas, além de se coibir a impunidade, imprescindível a criação de um instituto que assegurasse a eficácia da persecução ou da punição do indiví­duo que debandou do território onde cometera o crime, originando-se o instituto da extradição.

A extradição, em apertada síntese, consiste no “ato de entrega que um Estado faz de um indivíduo procurado pela justiça para ser processado ou para a execução da pena, por crime cometido fora de seu território, a outro Estado que o reclama e que é competente para promover o julgamento e aplicar a punição[[iii]].”

No Brasil, a Extradição é preconizada na Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, que estabelece as regras e procedimentos para a Extradição do estrangeiro, podendo ser requerida mesmo sem a celebração de acordos ou trata­dos entre os países.

Mas, inobstante à possibilidade da extradição, por certo que devemos pensar na hipótese do estrangeiro ter cometido crime também em território nacional. Neste caso, muito embora absolutamente crível a possibilidade da prática delitiva em território nacio­nal, por certo que a doutrina não colaciona o procedimento a ser adotado nestes casos.

Ao nos depararmos com o disposto no Estatuto do Estrangeiro, a regra geral encar­tada no bojo do artigo 89, determina que “Quando o extraditando estiver sendo processado, ou tiver sido condenado, no Brasil, por crime punível com pena privativa de liberdade, a extradição será executada somente depois da conclusão do processo ou do cumprimento da pena, ressalvado, entretanto, o disposto no artigo 67”.

Neste ínterim, somente em casos excepcionais, diante da conveniência e do inte­resse nacional, é que pode ser olvidada a regra do artigo 89 do Estatuto do Estran­geiro, determinando-se a expulsão do estrangeiro[[iv]], ficando a critério do Presidente da República a determinação do envio imediato do estrangeiro para o Governo Reque­rente.

Todavia, a questão que exsurge da remessa imediata ou antecipada do extradi­tando, decorre do andamento dos processos que o extraditando respondia, do qual a Lei 6.815/80 não apresentava qualquer solução acerca do seu destino ou solução. Unica­mente estabelece que seria possível e admissível a entrega do estrangeiro, lastre­ando-se a decisão em critérios de conveniência e interesse nacional.

Mas o que ocorreria com o processo ao qual o extraditando responde em territó­rio nacional? Poderia o extraditado ser julgado à sua revelia? Se houvera a sua extradi­ção, como lhe poderia ser assegurado os basilares do contraditório e da amplitude de defesa como meio de se lhe assegurar o devido processo legal como instrumental da preservação da dignidade da pessoa humana, fundamento apriorístico do nosso Es­tado Democrático de Direito?

Evidentemente, ainda que não esteja no país para responder às acusações que se lhe foram indigitadas, imprescindível sejam asseguradas as suas garantias constitucio­nais, mormente porque o verbete constitucional agrega valor de forma gené­rica ao preconizar que aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusa­dos em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, não estabelecendo o basilar constitucional nenhuma digres­são ou exceção ao fato de ser o acusado estrangeiro, extraditando ou extraditado.

Sob outro enfoque, também jamais se poderia julgar o extraditado à revelia, por­quanto necessário que seja intimado pessoalmente para responder à ação penal e as­sim não o faça de forma espontânea.

Analisando as hipóteses previstas no nosso ordenamento jurídico pátrio, a solu­ção que nos parece mais viável seria a sua extinção da punibilidade pela concessão de graça, pela interpretação extensiva do decreto presidencial que determinou a remessa do estrangeiro para o país solicitante.

Isso porque, como estabelece o Estatuto do Estrangeiro, e pelo que se denota dos episódios atuais ocorridos no Brasil na atualidade, ainda que seja do Supremo Tribu­nal Federal a competência para julgar a legalidade e a admissibilidade do pro­cesso de extradição[[v]], o extraditando somente será entregue mediante Decreto Presiden­cial[[vi]], resultando na assinatura do Decreto em renúncia tácita ao direito de ação penal, abrindo mão da punição pelo eventual delito praticado quando o estran­geiro permaneceu em território nacional.

Analogicamente, se por critério de conveniência ou de interesse nacional pode o extraditando ser enviado ao solicitante tão logo se dê a decisão de extradição, da mesma forma, pelo critério de conveniência e interesse, se dá a perda do interesse de agir na ação penal que respondia o extraditando em território nacional.

(*) Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins é advogado criminal, membro do escritório Bialski Advogados Associados.

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