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Barnabé, o funcionário

Por José Geraldo Vinci de Moraes (*) | 07/05/2017 13:48

Certas questões e temas rondam a sociedade brasileira de maneira recorrente, sobretudo aqueles relativos à sua modernização. Provavelmente porque resistem em se instalar de maneira definitiva, estão sempre na ordem do dia. Os debates atuais em torno da reforma trabalhista e da previdência despertaram alguns deles, como o da dualidade de regime de trabalho existente no País.

Criada durante o governo de Getúlio Vargas, ela estabeleceu diferenças entre o sistema regrado pela CLT e o do estatuto do funcionário público (1939). A força da diferenciação criou duas maneiras de encarar e exercer o mundo do trabalho, de tal maneira que, já na década de 1940, o “servidor” ganhou uma distinção oblíqua por meio de um apelido, aliás outra prática rotineira de nossa sociedade fundada nas relações afetivas e de pessoalidade.

Chamado de Barnabé, rapidamente o título tornou-se sinônimo de funcionário público, principalmente daquele servidor mais humilde, de vida apertada, “que ganha só o necessário pro cigarro e pro café”. Curiosa foi a maneira para a criação e consagração do apelido: uma marchinha carnavalesca composta em 1948 por Haroldo Barbosa (1915-1979) e Antonio de Almeida (1911-1985).

Na verdade, a canção foi criada um ano antes para um número musical para ser cantada por Grande Otelo em uma revista no Cassino da Urca. Tradicionalmente o Teatro de Revista, como sugere o nome, tratava das questões do dia a dia que ganhavam algum destaque. A motivação circunstancial neste caso foi a campanha dos servidores para a melhoria de seus salários, aparentemente já em declínio. O grande nó para os criativos compositores era como fazer verso com rima fácil combinando com a letra É, classificada como o último estágio da escala da carreira funcional daspeana (da sigla DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público)! Daí veio o inesperado nome Barnabé, que se transformou no alegre refrão:

Ai Ai Barnabé

Ai Ai funcionário letra É

Ai Ai Barnabé

Com o sucesso na casa de espetáculos carioca, os compositores resolveram adaptar os versos para uma gravação feita por Emilinha Borba destinada ao carnaval de 1948. A repercussão foi imediata e ganhou a simpatia das ruas do Rio de Janeiro, capital do país tradicionalmente repleta de funcionários, que viviam tanto as regalias como as agruras do funcionalismo. Aliás, ganhar o sufixo ismo significava alcançar a lógica de um sistema fechado, com princípios, conceitos e, finalmente, um modo de vida próprio. A vida peculiar do Barnabé se estabeleceu e se tornou marca identitária e simbólica, permanecendo em nosso imaginário até hoje.

No caso específico da marchinha, a letra tratava com bom humor as dificuldades e embaraços do pequeno funcionário público em contraste também com o operário. O Barnabé é aquele que mal começa o mês e já está endividado, tendo que recorrer à sorte no jogo do bicho ou aos empréstimos, descontados do salário. Para penetrar de fato no sentido da canção, a letra – logo a seguir – deve ser acompanhada pela escuta integral da canção (clique aqui). Deste modo se compreende melhor o humor e os deslocamentos presentes na composição. Este era um recurso criativo usual dos compositores de marchinhas: o disparate cômico de tratar com alegria temas ásperos e adversos.

Barnabé, o funcionário

Quadro extranumerário
Ganha só o necessário
Pro cigarro e pro café
Quando acaba seu dinheiro
Sempre apela pro bicheiro
Pega o grupo do carneiro
Já desfaz do jacaré
O dinheiro adiantado
Todo mês é descontado
Vive sempre pendurado
Não sai desse tereré
Todo mundo fala fala
Do salário do operário
Ninguém lembra o solitário
Funcionário Barnabé
Ai Ai Barnabé
Ai Ai funcionário letra É
Ai Ai Barnabé
Todo mundo anda de bonde

Só você é que anda a pé…

Saindo das ruas e do período carnavalesco, o epíteto ganhou a imprensa carioca, que começou a utilizar o apelido para identificar o servidor público de “vida apertada”, consagrando-o definitivamente. Embora o modo de vida do Barnabé em todas suas dimensões ainda continue presente, o apelido caducou, assim como, infelizmente, o uso inteligente, criativo e bem-humorado das marchinhas. Bem provavelmente o tom nebuloso e exasperado dos debates e discussões dos últimos tempos tenha contribuído muito para isso. E talvez nosso cotidiano tenha ficado mais próximo da canção Tão, de Rita Lee! Quem sabe falamos dela futuramente.

(*) José Geraldo Vinci de Moraes é professor do Departamento de História da FFLCH-USP e pesquisador musical

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