Carência é o maior alucinógeno que existe
A carência é uma lente turva. Quando ela se instala, a realidade perde contorno, o senso crítico adormece e o discernimento se dissolve. O que antes era nítido torna-se embaçado — e aquilo que não nos faria o menor sentido em dias de lucidez passa a parecer irresistivelmente bom. A carência é, de fato, o maior alucinógeno que existe. Ela não distorce apenas o olhar sobre o outro, mas também sobre nós mesmos.
Quando estamos carentes, confundimos atenção com afeto, presença com amor, interesse momentâneo com vínculo verdadeiro. Passamos a implorar por migalhas, aceitando o mínimo como se fosse muito. Nos convencemos de que uma resposta tardia é prova de consideração, que uma presença intermitente é sinal de constância, que um toque frio ainda é carinho. Tudo porque a carência tem o poder de transformar qualquer ilusão em refúgio temporário.
Ela nos coloca em um estado de abstinência emocional tão intenso que o primeiro gesto de gentileza já parece salvação. É quando passamos a projetar nos outros o que falta em nós: o colo que não recebemos, o amor que não damos, o cuidado que esquecemos de nos oferecer. Assim, a carência se alimenta de si mesma — quanto mais buscamos fora o que não encontramos dentro, mais dependentes nos tornamos.
O perigo está em que, sob o efeito dessa “substância emocional”, perdemos a capacidade de ver os sinais. Ignoramos o desinteresse, justificamos o desrespeito, romantizamos o que deveria ser apenas um alerta. A carência faz com que aceitemos o raso, porque o medo do vazio parece insuportável. E, no desespero de sermos amados, acabamos abrindo mão daquilo que mais exige amor: nós mesmos.
Mas há um ponto de virada — o instante em que o encantamento passa e o efeito da carência se dissipa. É quando a lucidez volta e enxergamos que não era amor, era necessidade. Que não era companhia, era medo da solidão. Que não era reciprocidade, era autoengano. E essa percepção, por mais dolorosa que seja, é libertadora. É o começo de uma reconstrução interna.
Aprender a reconhecer os efeitos da carência é um ato de maturidade emocional. É entender que estar sozinho não é o mesmo que estar vazio. Que o afeto mais estável e duradouro nasce da relação que temos com nós mesmos. Que o amor-próprio não é arrogância, é sobriedade — é a cura que neutraliza o poder alucinógeno da carência.
Quando o coração está nutrido de si, ele deixa de se contentar com o pouco. Passa a escolher com calma, a perceber com clareza, a entender que amor saudável não tem urgência nem mendicância. A carência pode até nos iludir por um tempo, mas a consciência — essa sim — é o antídoto definitivo.
No fim, é simples, embora nada fácil: para enxergar o outro com clareza, primeiro é preciso enxergar-se sem carência. Porque quem se basta não se engana — e quem não está carente, vê o mundo como ele realmente é.
(*) Cristiane Lang é psicóloga clínca.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

