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Duas mães

Por Heitor Freire (*) | 29/04/2014 08:38

Sou um ser privilegiado. Em minha vida tive a oportunidade de conviver com duas mulheres, duas grandes damas: minha mãe e minha sogra, Dorila e Armanda.

Minha mãe, filha de um homem rico, casou-se com um homem rico. Meu pai era um grande comerciante na fronteira com uma casa que vendia mercadorias por atacado, Casa Estrella, em Pedro Juan Caballero. Tinha uma frota de caminhões e, apesar do estado sofrível das estradas, vendia mercadorias para todo o interior do país.

Com o advento da Revolução de 1947, no Paraguai, e a vitória do partido Colorado, meu pai pertencendo ao partido Febrerista teve que abandonar o país para não ser morto. E assim, foi obrigado a deixar para trás todo o seu patrimônio.

Com essa situação fomos acolhidos na casa do meu avô materno, Don Francisco Rodriguez, em Ponta Porã. Meu pai, não vislumbrando oportunidades de trabalho naquela cidade, resolveu mudar-se para Campo Grande. No que foi acompanhado naturalmente pela minha mãe e por todos os meus irmãos, em número de seis, todos menores. Eu era o mais velho, com sete anos.

Em Campo Grande, meu pai começou trabalhando no histórico Bar Bom Jardim, no centro da cidade. Ali ele alugou um ponto comercial e começou a fritar pastéis, montou uma engraxataria e assim recomeçou a vida. E a mamãe firme, ao lado dele. Como éramos todos pequenos, ela cuidava das crianças e da casa. Eu ajudava meu pai no bar. Comecei a trabalhar com sete anos. E não pretendo parar nunca.

Dali, do bar Bom Jardim, ele foi para o Mate Índio, depois adquiriu o salão Cristal, onde hoje é a Galeria São José. A seguir, estabeleceu-se na rua 7 de Setembro, com comércio de secos e molhados, entre a rua Rui Barbosa e a 13 de Maio. Naquela época, 1952, a rua 7 entre a Rui Barbosa e a 14 de Julho, era a zona do “baixo meretrício”. E ali, bem no coração da zona, nós fomos morar. Foram tempos difíceis.

Não havia muro entre as casas, só alambrado. Ou seja, o que acontecia nas casas vizinhas era presenciado por nós e nossas duas irmãs. E a dona Dorila, firme, contente, sempre soube se relacionar com a vizinhança, sem reclamar. Na rua 7 moramos por 14 anos. Depois, quando meu pai adoeceu com câncer, houve a mudança para São Paulo, onde ele veio a falecer dois anos mais tarde.

Apesar de ser convidada pelo meu avô para morar com ele em Ponta Porã, num belo sobrado colonial, minha mãe em nenhum momento hesitou. Dizia que havia se casado com meu pai e com ele é que iria viver. E assim foi, legando para todos nós uma herança de integridade, de caráter, de solidariedade e de lealdade que marcou nossas vidas.

E como avó, minha mãe fazia a delicia dos netos. Era queridíssima por todos, e me lembro dela, já velhinha se sentando no chão para brincar com os mais pequenos. Não era dessas avós de dar presentes caros, mas era muito companheira e cúmplice dos netos.

Mamãe era divertida e sempre muito bem humorada. Certa vez, minha filha Valéria, então com 15 anos, queria assistir Os Embalos de Sábado à Noite, a estréia do John Travolta nas pistas de dança. Minha filha não tinha companhia para ver o filme, e dona Dorila, do alto de seus 71 anos, prontamente se prontificou a acompanhá-la. Foi com muito gosto e curtiu. Ela sempre lia de tudo, acompanhava a vida dos artistas da tevê, e esta sempre bem informada.

A minha sogra, Armanda, também foi uma mulher forte. Após o seu casamento com meu sogro, em Bela Vista, mudaram-se para Ponta Porã. As adversidades que ela enfrentou não foram poucas. Com três filhas adolescentes, houve a separação conjugal. E ela assumiu a paternidade da família.

Inteligente, corajosa, trabalhadora, incansável, tinha dois caminhões que transportavam mercadorias para Campo Grande. Na época do golpe militar de 64, teve um deles apreendido sob a acusação de que estava fazendo contrabando. Após provar, perante o general comandante da 9ª Região Militar, a falsidade da acusação, dona Armanda conseguiu a liberação do caminhão.

Mas, ao recebê-lo, verificou que o tanque de combustível estava vazio. Quando da apreensão, o tanque estava cheio. Não teve dúvidas, voltou ao general e exigiu que abastecessem o caminhão. Assim era dona Armanda, na defesa do seu direito, não recuava na frente de ninguém. Enfrentava quem fosse preciso. Até mesmo um general, em plena ditadura militar, dando um belo exemplo do famoso ditado “Quem não deve, não teme”.

E assim, educou as três filhas e as casou. Teve depois uma casa de venda de calçados. Montou, a seguir, um restaurante, que era famoso em toda a fronteira, pela qualidade da sua cozinha que, naturalmente, ela mesma comandava e literalmente botava a mão na massa. Me lembro dela esticando a massa do pastel – delicioso – com garrafa de cerveja no lugar do rolo de madeira.

Por muitos anos, nossas filhas mais velhas, Valéria, Andréa e Raquel, passaram as férias na casa da vó Armanda, em Ponta Porã. O restaurante Colombo acabou virando um ponto de encontro da juventude no início dos anos 80, em plena esquina da avenida Brasil, quase em frente da Igreja São José.

Nas tardes do domingo o ponto alto do agito era estacionar na calçada do restaurante, que ficava coalhada de motos e carros dos amigos, reunidos ali naquele clima de paquera. Era comum ela servir pastel de banana com canela e uma caneca de mate quente a quem aparecesse por lá, sempre no esquema “boca-livre”. O restaurante estava sempre de portas abertas para a moçada. Minhas filhas tem ótimas lembranças dessa época de ouro da adolescência delas.

No último período de sua vida, tive o privilégio, juntamente com a Rosaria, de cuidá-la e mantê-la em nossa casa, por longos anos. Considero uma honra ter acompanhado toda a sua trajetória e que se constituiu também numa rica herança para todos nós.

São duas mães que merecem ser relembradas sempre, principalmente no dias mães.

(*) Heitor Freire é corretor de imóveis e advogado.

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