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Fazenda deve ostentar condição diferenciada

Por Luiz Gustavo* | 13/12/2011 07:05

O princípio constitucional que preconiza a igualdade de todos perante a lei, inserido no artigo 5º de nossa vigente Constituição Federal de 1988, longe de pretender conferir tratamento substancialmente idêntico a todos, manifesta-se materialmente quando, nas relações sociais, considera-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, tomando-se como parâmetro a conhecida e antiga lição de Aristóteles.

Diante dessa constatação, nada mais natural que, em defesa do interesse coletivo, que se sobressai em relação ao privado, sejam conferidas prerrogativas (que não devem ser confundidas com “vantagens”) aos entes públicos quando postulam em juízo. Esta, vale frisar, é uma das formas claras de manifestação de outro princípio, o da “supremacia do interesse público” sobre o interesse particular, um dos maiores alicerces da sociedade contemporânea, e certamente a maior pilastra do direito público até os dias atuais.

Portanto, em razão de tutelar o interesse coletivo, a Fazenda deve ostentar condição diferenciada. Repita-se, não se tratam de vantagens sem fundamento, meros privilégios em tom de discriminação, ao contrário, são prerrogativas bem fundamentadas e cobertas pelo manto do princípio da igualdade em seu foco material.

Algumas das razões que embasam esse tratamento diferenciado, além de serem facilmente visualizadas por quem convive dia-a-dia no seio das chamadas “repartições públicas”, foram elencadas na obra do professor Leonardo José Carneiro da Cunha e serão sintetizadas a seguir.

Para esse autor, o Estado mantém uma (grande) burocracia ligada à sua atividade, o que dificulta o acesso a fatos e outros elementos necessários à atuação de seus representantes. Do mesmo modo, o agigantado volume de trabalho destes (geralmente Advogados Públicos) os impede de desempenhar sua rotina nos mesmos prazos fixados para os particulares. Não bastasse isso, enquanto na área privada pode-se selecionar as causas nas quais se deseja atuar, recusando o que não lhe interesse, na seara pública quem representa a Fazenda não pode declinar de sua função, deixando uma ou outra demanda de lado.

Por tudo isso é que a doutrina, estrangeira inclusive (francesa, italiana, espanhola e portuguesa), é praticamente uníssona ao defender o tratamento diferenciado do Estado em juízo ou perante outros órgãos (CUNHA, 2007, p. 35-36).

Na atuação de fato, ou seja, no labor cotidiano com as suas contendas judiciais, obviamente que a Fazenda Pública se sujeita às regras da lei processual em vigor para a defesa de seus interesses. Além da legislação adjetiva representada primordialmente pelo Código de Processo Civil, leis extraordinárias também integram o rol de instrumentos utilizados pelos representantes do Erário em suas demandas jurídicas, merecendo especial destaque a Lei 6.830/80, a Lei de Execução Fiscal.

E é desses diplomas que serão extraídas as principais regras do direito objetivo que são apontadas como algumas (as afetas ao tema ora desenvolvido) das prerrogativas processuais da Fazenda, tão necessárias para o verdadeiro respeito ao princípio da igualdade (material) das partes, conforme já razoavelmente explanado, bem como para uma maior efetividade na recuperação dos créditos tributários.

Sabe-se que é a Lei 6.830/80 que regula a execução da dívida ativa da Fazenda Pública (de créditos inscritos, exeqüíveis, portanto). Esta, por sua vez, estabelece logo em seu artigo 1º a aplicação subsidiária do nosso Digesto Processual Civil (que compila dispositivos de caráter geral) nos procedimentos que regulamenta como norma de envergadura especial.

Com o intuito de sistematizar a apresentação das regras que são entendidas como prerrogativas das pessoas públicas em juízo, tornando mais fácil a sua assimilação pelo leitor, elas serão expostas em duas “partes”. Uma primeira e curta que abordará os seus prazos diferenciados no âmbito judicial, e outra que tratará das demais normas afetas ao tema. Segue, então, o que se enxerga como as principais disposições legais a esse respeito, não somente relacionadas à execução da dívida ativa da Fazenda, mas à sua atuação como um todo, notadamente as mais relevantes para a qualificação e a efetividade de sua atividade.

Uma das mais conhecidas regras processuais que distingue o “ingresso” do Estado em juízo é o seu prazo dilatado para contestar (as petições iniciais contra si), ou responder às ações (conceito mais genérico), e recorrer (das decisões judiciais em seu desfavor). O artigo 188 do Código de Processo Civil é expresso ao estabelecer o prazo em quádruplo para a apresentação da sua defesa e em dobro para interpor seus recursos. Para a doutrina isto se aplica a qualquer espécie de procedimento e ainda que o ente não figure como parte (que seja terceiro interessado - interveniente/assistente, por exemplo), mas desde que não haja norma específica dispondo em contrário, como a encontrada na legislação que disciplina a ação popular (prazo de vinte dias para contestar; artigo 7º, IV, da Lei 4.717/65), exemplo citado por José Carlos Barbosa Moreira na obra do professor Leonardo Cunha antes comentada (CUNHA, 2007, p.40). Importante esclarecer que configurado um litisconsórcio passivo nos autos judiciais – Fazenda Pública e particular como réus – não deve ser conferido àquela quatro vezes o prazo do seu litisconsorte (que será de 30 dias, na forma do artigo 191 do mesmo Código) para apresentar sua resposta, o que representaria uma extensão desarrazoada do seu tempo, que já está resguardado com a aplicação isolada do dispositivo legal mencionado no início. Portanto, não há que se falar em cumulação das previsões dos artigos 188 e 191 do Digesto Processual em favor dos entes públicos.

A maioria dos fatores que serão agora apresentados encontram albergue na Lei de Execução Fiscal que, constituindo norma especial a regular especificamente a execução da dívida pública, prevalece em relação às demais apenas respeitando-as em caráter subsidiário. Dois deles, entretanto, são fruto de outra lei extravagante, a chamada Lei de Custeio da Previdência Social, que traz no seu corpo previsões de interesse para as execuções públicas.

A primeira das prerrogativas, escolhida não por acaso e sim devido a sua utilidade ímpar para os representantes do Estado em juízo, é a necessidade de que estes sejam pessoalmente intimados de (e para) qualquer ato do executivo fiscal. O parágrafo único do artigo 25 da LEF inclusive recomenda que tais intimações ocorram com a “vista” (ou “carga”, em termos práticos) dos autos mediante sua remessa para o órgão estatal, o que se tornou mandamento com o advento da Lei 11.033/2004 (artigo 20) [1] . Outro dispositivo, o artigo 6º da Lei 9.028/95, que dispõe sobre as atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União, reitera a regra contida na LEF. Apesar de muito criticado pela advocacia privada e de questionado por uma parcela da jurisprudência pátria, que em alguns momentos deixa de acolhê-lo, entende-se que a observância desse dispositivo deve ser tida praticamente como condição sine qua non para a (boa) atuação da Advocacia Pública, pois tem nítido caráter de diminuir o grande abismo estrutural existente entre suas condições de trabalho e as desfrutadas pelos escritórios particulares.

Outro ponto, que difere a execução promovida pela Fazenda da chamada execução civil, é a exigência de garantia integral do débito em cobrança para a admissão da defesa do devedor. Na execução fiscal, o contraditório almejado pelo executado, e exercido via de regra através de embargos, somente será admitido/iniciado após a denominada “garantia prévia do juízo” [2] , fato desnecessário diante das execuções particulares segundo a mais moderna legislação processual a respeito. Como está no bojo da lei criada especialmente para a cobrança dos créditos fiscais, é evidente o caráter protetivo desta e de outras medidas elencadas na sequencia, visando garantir o seu recebimento de várias formas.

Ainda tratando do direito de defesa do requerido nessa espécie diferenciada de execução, tem-se que a sua intimação do ato de penhora, ou seja, a sua ciência sobre a garantia da dívida, ainda que por edital, também é fator indispensável para a abertura do contraditório, pois somente a partir daí é que se abre o prazo para a sua defesa, o que não é exigido na execução privada (artigo 16, III, da LEF).

Garantido o juízo da execução fiscal, a substituição do bem penhorado não deve ocorrer por opção exclusiva do devedor, faculdade que lhe é oferecida pela sistemática processual vigente em outro(s) feito(s) executivo(s). Aqui, o juiz pode deixar de ouvir o credor apenas se a parte contrária pretender trocar o bem anteriormente ofertado por dinheiro ou fiança bancária, haja vista a sua inconteste prevalência na ordem de “importância” quando o assunto é garantia de dívida. No mais, não se fala em substituição de penhora sem a concordância prévia do exeqüente, a Fazenda Pública (artigo 15 da LEF).

Outra prerrogativa sua, citada talvez por zelo e cautela já que alguns a classificariam como administrativa em vez de processual, é a impossibilidade da concessão do parcelamento do débito tributário executado pelo órgão jurisdicional, pois os “acordos” dessa natureza dependem de lei específica autorizando-os e são atos exclusivos e vinculados à autoridade administrativa. Portanto, a possibilidade aberta pelo artigo 745-A na nova configuração do Código de Processo Civil apenas tem serventia para a execução particular, em nada atingindo a nossa espécie em destaque.

Raciocínio semelhante é aplicado ao parcelamento do valor de arrematação, autorizado pela norma geral em alguns casos mas que, entretanto, não gera efeitos quando pleiteado nos autos fiscais, onde não é considerado direito do arrematante, tendo que passar pelo crivo da exeqüente, pelo menos quando a sua figura recai sobre a UNIÃO (execução de débitos federais). Tal foi estabelecido pelo artigo 98 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, com efeitos estendidos pelo que dispôs o seu § 11. Aqui, portanto, novamente será (ou poderá ser, já que se tem apenas o exemplo da UNIÃO) o representante do credor, e não a lei ou o magistrado, que apreciará o pedido de parcelamento e decidirá a sua efetivação.

E como a ênfase neste momento gira em torno da expropriação dos bens do devedor, apresenta-se outra prerrogativa extremamente valiosa para a Fazenda Pública, pelo menos para a federal: a de adjudicar [3] as garantias pelo valor correspondente a cinqüenta por cento da avaliação constante nos autos, outra norma trazida pelo mesmo artigo da lei extraordinária citada no parágrafo anterior, agora pelo seu § 7º, com os efeitos do § 11º. Importante porque deve funcionar como mecanismo de pressão contra o executado, que pode se imaginar perdendo um bem que repute de grande valia por nada mais nada menos que metade de seu preço de mercado. Não bastasse isso, vale destacar que os autos continuarão sendo processados para a satisfação da eventual diferença entre o valor da dívida e o da adjudicação. Ou seja, o réu pode se sentir duplamente derrotado: perde o bem sem o fim da execução fiscal.

E já apresentando as últimas regras legais favoráveis aos entes públicos na busca pela recuperação de seus créditos, tem-se a não sujeição destes a concurso de credores ou habilitação em falência, liquidação, inventário ou arrolamento (artigos 29 da LEF e 187 do CTN). Aliás, a lei também proíbe a autorização judicial para a alienação de bens nesses procedimentos sem a comprovação prévia da inexistência de débitos fiscais em nome dos interessados (artigo 31 do mesmo diploma), o que, apesar de não ser prerrogativa diretamente ligada àqueles que ocupam o pólo ativo das execuções fiscais, pode servir no mínimo como medida que provoca um alerta adicional para as Fazendas, impedindo a transferência de bens à sua revelia, o que poderia representar prejuízo ao Erário caso algum favorecido por essa alienação tenha dívida(s), por exemplo. Importante registrar, entretanto, que boa parte dos órgãos judiciais não admitem a satisfação do crédito estatal sem que o mesmo concorra com os demais, notadamente em autos de falência, no mais das vezes em respeito à prevalência de créditos alimentares, que realmente merecem precedência em relação aos do fisco, até por autorização expressa do artigo 186 do Código Tributário Nacional [4].

[1]“Art. 20. As intimações e notificações de que tratam os arts. 36 e 38 da Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 1993, inclusive aquelas pertinentes a processos administrativos, quando dirigidas a Procuradores da Fazenda Nacional, dar-se-ão pessoalmente com a entrega dos autos com vista.”

[2] Lei 6.830/80, art. 16, § 1º

[3] Adjudicação. O ato de transferir ao exeqüente bens penhorados, ou os respectivos rendimentos, em pagamento do seu crédito contra o executado (FERREIRA, 2004, p.52)

[4] “O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho”

Luiz Gustavo é procurador da Fazenda Nacional em Araçatuba (SP).

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