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Feminicídio não é exceção, é cultura. E precisamos encarar isso

Por Joel Mesquita | 21/11/2025 08:13

O feminicídio no Brasil — e, de forma emblemática, em Cuiabá (MT) — não é apenas um crime bárbaro cometido por indivíduos isolados. É a face mais brutal de uma cultura que ainda naturaliza a desigualdade de gênero e legitima, de formas explícitas ou veladas, a dominação masculina. É, como diria o antropólogo Clifford Geertz, um “texto cultural”: um sistema de significados que diz muito sobre quem somos e sobre as hierarquias que permitimos perpetuar.

No debate público, costuma-se tratar o feminicídio como tragédia privada, como descontrole emocional ou “drama familiar”. Mas esse enquadramento, além de equivocado, é politicamente conveniente — porque oculta a dimensão coletiva do problema.

O feminicídio é um ato extremo dentro de uma pedagogia social da violência: uma cultura que ensina, de forma persistente, qual é o “lugar da mulher” e o que acontece quando ela ousa transgredir.

E é por isso que enfrentá-lo exige mais do que prisões e leis. Exige decifrar os signos de um patriarcado que continua organizando imaginários, práticas e instituições, inclusive o próprio Estado. Clifford Geertz, em O Saber Local, defende que toda prática humana só pode ser compreendida quando se interpreta o conjunto de significados que a sustenta. Cultura, para ele, é uma teia em que estamos todos enredados — e o papel das ciências sociais é descrevê-la de forma “densa”.

Se trazemos essa lente interpretativa para o feminicídio, percebemos que não estamos diante de um evento isolado, mas de um ritual de poder. Quando um homem mata uma mulher por ela ter decidido romper uma relação, buscar autonomia ou simplesmente existir de modo que desafie expectativas, ele tenta restaurar uma ordem que considera natural: a ordem patriarcal.

É uma encenação violenta de um código cultural antigo, que coloca o masculino como medida do humano e o feminino como desvio. O ato letal comunica, simbolicamente, uma mensagem coletiva: “eu tenho poder sobre você”.

E essa mensagem é a mesma reiterada por séculos de discursos religiosos, jurídicos e literários. O Brasil, marcado por uma herança colonial profundamente misógina, construiu um modelo de gênero que transformou o corpo das mulheres em território de controle. Por muito tempo, o direito legitimou a violência doméstica como “questão privada”.

Não surpreende, portanto, que até hoje lutemos contra mentalidades que enxergam a mulher como propriedade — e o feminicídio como ato de “correção moral”. Ao observar o cenário de Cuiabá, essa lógica se torna ainda mais visível.

Os dados da Secretaria de Segurança Pública (2020–2024) confirmam que a violência de gênero é fenômeno estrutural e cotidiano. As principais vítimas são mulheres negras e em situação de vulnerabilidade social — evidência de que o patriarcado brasileiro dialoga com o racismo e com desigualdades econômicas profundas.

Para compreender o feminicídio em Cuiabá, é preciso realizar aquilo que Geertz chamaria de “descrição densa”: olhar para os bairros periféricos, para as disputas familiares invisibilizadas, para o preconceito contra mulheres que conquistam autonomia, para as redes informais que normalizam a violência como método disciplinador.

A violência letal contra mulheres não nasce no momento do crime. Ela é construída no silêncio das instituições, nas piadas diárias, no julgamento moral, na incapacidade do Estado de proteger quem mais precisa.

A Lei Maria da Penha (2006), a Lei do Feminicídio (2015) e, mais recentemente, o Pacote Antifeminicídio (2024) representam tentativas importantíssimas do Estado brasileiro de romper com a tradição patriarcal. São marcos civilizatórios que afirmam: a vida das mulheres importa, e o que antes era tolerado agora é crime. Mas há um paradoxo que precisamos enfrentar: o ordenamento jurídico brasileiro nasceu e cresceu dentro da lógica patriarcal.

Assim, até quando legisla para proteger mulheres, carrega consigo as sombras dessa origem. Como demonstra a sociologia do direito, não basta formular boas leis; é necessário que elas penetrem no imaginário social — e isso é um processo lento, conflituoso, cheio de resistências.

A distância entre norma e realidade é gigantesca. Não será uma canetada que desmontará séculos de misoginia. Se queremos, de fato, reduzir o feminicídio, precisamos enfrentar não apenas o criminoso individual, mas o sistema simbólico que o produz.

Precisamos revisar práticas culturais arcaicas, educar meninos para enxergarem meninas como iguais, romper com o mito de que violência é autoridade, questionar as masculinidades que se afirmam pela força, e capacitar o Estado para agir antes que a violência seja irreversível.

É ingênuo imaginar que mudanças dessa magnitude acontecerão de forma rápida. Mas também é irresponsável fingir que estamos avançando no ritmo necessário. A cada dia, mulheres morrem porque a sociedade brasileira não conseguiu — ou não quis — transformar seus significados mais profundos. Enquanto o feminicídio continuar sendo um texto cultural, ele continuará sendo escrito. E apagado apenas com sangue.

(*) Joel Mesquita é bacharel em direito, sociólogo e escrivão de polícia.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.